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A série televisiva Anarquistas graças a Deus, baseada em obra homônima de Zélia Gattai e dirigida por Walter Avancini, em 1984, tem cenas que parecem decalcadas de nosso álbum de fotografias. É difícil não se ver ali. Há uma sequência em particular: Angelina, a matriarca italiana interpretada com tinturas fortes por Débora Duarte, cata uma vareta para defender um de seus filhos, alvo de chacota da piazada da rua. Quando ela vira uma Anita Garibaldi do Bexiga, os malvados de calças curtas se escafedem pelos quintais. É divertido. Mas só na tela, onde as roupas de época e os demais encantos da dramaturgia fazem do bullying um inofensivo retrato em branco-e-preto.

Bullying, como se sabe, é o nome dado aos maus-tratos em série sofridos por crianças e adolescentes, particularmente nas escolas, onde a mamma não está a postos na hora do recreio, com um galho à mão. Raro quem não tenha participado de uma dessas sessões de tortura, seja como presa, seja como predador. Basta fechar os olhos e puxar o fio da memória. Quem provou, não esquece. E lembrar é um bom início de conversa.

O jornalista paranaense Victor Folquening, em uma fala recente para universitários, arrancou gargalhadas da plateia ao dizer que é no colégio que descobrimos o tamanho da nossa orelha, do nosso nariz ou a nossa falta de tamanho. Verdade. A escola é o lugar da aurora das nossas vidas, deixa saudades da professorinha, mas não raro sentimos engulhos ao reviver a provação sofrida nos anos que – para alívio de muitos – não voltam mais.

De tão comum – o bullying costuma ser encarado co­­mo um ritual de passagem, tanto quanto a lancheira carregada com Nescau e Mirabel, o avental xadrez, a foto – a gente sem os dentes da frente, é claro – tendo ao fundo um painel em que está pintada a Bandeira Nacional. Ledo engano. É saboroso se imaginar com o chapéu feito de jornal, cantando Marcha Soldado, cabeça de papel, mas é aterrorizante a imagem de um pequeno sendo vaiado no meio de uma pueril Roda-cotia. Ou encontrando o lápis quebrado na carteira, sem mais. Ou padecendo a indiferença dos colegas. Ou...

Nos últimos 40 anos, o festim diabólico dos alunos tem desafiado pesquisadores e quebrado a cabeça de pais e educadores. É preciso entender a aparente banalidade do bullying como um mal – um mal que pode ser evitado. Convencer disso é que são elas. Particularmente no que diz respeito aos meninos: diz-se que devem enfrentar, reagir, provar a masculinidade como se fossem bárbaros atravessando a floresta negra. No meio desse discurso, com panos quentes, impera o disfarce: "É brincadeira."

Mas os estudos têm mostrado que não há graça ne­­nhuma na zombaria. Ferir não forma o caráter. Não é inofensivo. Não é inevitável: é um sombrio exercício de poder. O bullying funciona como show. Tem ensaio. Estreia. Bis. Temporada. Os agressores são treinados em lares de pouco afeto e pouco limite. Os agredidos respondem com baixa autoestima, desempenho ruim, mal-estar. E ainda têm de ouvir que talvez lhes falta habilidade para lidar com atiradores de facas. A defesa é ficar doente, para faltar pelo menos um dia ao circo de horrores. Como a desculpa nem sempre funciona, há já uma galeria de suicidas. Para piorar, não faltam escolas dizendo que se isso existe, deve ser no colégio da esquina, não ali. Tem explicação para esse ensaio da cegueira.

Em 2002, a Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), do Rio de Janeiro, entrevistou 5,8 mil estudantes e concluiu que 40% estiveram envolvidos em alguma prática de agressão escolar, em ambos os lados. É um número alto. Outro levantamento recente, da Organização Mundial de Saúde junto a 6 mil crianças e adolescentes portugueses, apontou que 50% das vítimas não contaram a ninguém o que sofreram. Quem padece, teme ter de carregar mais uma pecha – a de alcagueta. Re­­su­­mindo, além de comum, o bullying é envolto no silêncio – do agredido, do agressor, do colega que viu, do professor que bate em retirada.

A regra, contudo, tem de ser o escarcéu. Assim foi decidido em 1998, quando 17 países participaram da Conferência Europeia sobre Iniciativas para Combater o Bullying nas Escolas. O encontro representou um avanço e assinou embaixo os estudos do cientista norueguês Dan Owesus, pioneiro na compreensão do fenômeno, já a partir da década de 60. Vieram atrás campanhas envolvendo astros famosos, um dia vítimas de agressão escolar, como Harrison Ford e Michelle Pfeiffer. O assunto saiu da palidez do pátio da escola. Hoje, é uma causa.

No Brasil, pena, a questão ainda é vista como problema para resolver depois de amanhã. Aqui, a moeda nacional é o apelido, o sexismo e a crueldade vestida de camaradagem. Perseguição aos pequenos, diz-se, só se for em seriado americano ou em filmes como Carrie, a estranha, um clássico de Brian De Palma. Nossos guris são miniaturas do homem cordial. Além de quê, a educação já tem um mar de dilemas a navegar. "Bullying? Imagine."

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