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Editorial

Claudia Leitte e o racismo religioso banalizado

A cantora baiana Claudia Leitte |
Defesa de Claudia Leitte afirma que as alterações de letras refletem sua convicção religiosa pessoal e se inserem no âmbito da liberdade de consciência e de expressão garantidas pela Constituição. (Foto: Giuliano Gomes /Arquivo/ Gazeta do Povo)

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Há um ano começava um inquérito questionável, que acabou se transformando agora em uma ação judicial de proporções ainda mais preocupantes. Na semana passada, o Ministério Público da Bahia ingressou com ação civil coletiva contra a cantora Claudia Leitte, acusando-a de racismo religioso em razão da alteração de letras de músicas de axé em apresentações públicas. A ação, que tramita na 7ª Vara da Fazenda Pública de Salvador, pede indenização de R$ 2 milhões por danos morais coletivos e a imposição de restrições à atuação artística da cantora.

O fato que deu origem ao processo é conhecido e, em si, simplório. Em apresentações ao vivo, Claudia Leitte substituiu, em uma música do repertório do axé, a referência à orixá Iemanjá por uma menção a Jesus Cristo, utilizando o termo hebraico Yeshua. A substituição não foi aleatória: a cantora, convertida ao cristianismo evangélico, passou a adaptar a letra conforme sua convicção religiosa pessoal. Não houve ofensa direta, incitação ao ódio, vilipêndio de símbolos ou estímulo à discriminação contra religiões de matriz africana. Ainda assim, a prática foi enquadrada como racismo religioso, primeiro em investigação e agora em ação judicial.

A Constituição garante a liberdade de consciência, de crença e de expressão artística. Punir alguém por manifestar sua fé, sem ofensa ou incitação ao ódio, não é proteger direitos coletivos – é violá-los

A iniciativa do Ministério Público decorre de representação apresentada pelo Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras, que também tentou, sem sucesso, no início de 2025, impedir a contratação de Claudia Leitte pelo poder público para eventos oficiais, sob o argumento de que recursos públicos não poderiam financiar apresentações consideradas ofensivas. Na ocasião, a pretensão do Instituto não foi adiante, e com razão, uma vez que não há qualquer argumento legal para embasar a acusação de racismo contra a cantora. Mas, em vez de enterrar de vez a queixa, o MP seguiu adiante e agora processa formalmente a cantora.

O problema central não está no direito de grupos religiosos se sentirem contrariados ou mesmo ofendidos por manifestações artísticas – algumas de extremo mau gosto. Em uma sociedade plural, conflitos simbólicos são inevitáveis. O problema está em transformar desconforto subjetivo em ilícito jurídico e divergência religiosa em dano moral coletivo. Ao fazê-lo, o Estado deixa de atuar como garantidor das liberdades fundamentais para assumir o papel de árbitro de conteúdos aceitáveis.

A legislação brasileira é clara. Não há, na Lei do Racismo, dispositivo que permita enquadrar como ilícita a simples substituição de referências religiosas em uma obra artística, desde que não haja incitação à discriminação, ao preconceito ou à violência – e Claudia Leitte não faz isso. Tampouco se pode falar em vilipêndio de objeto de culto quando não existe desprezo, escárnio ou humilhação pública. E não há, no ordenamento jurídico, nada que permita a qualquer confissão religiosa exigir que seus símbolos sejam obrigatoriamente preservados em obras artísticas alheias.

Isso não significa, contudo, que a conduta da cantora esteja imune a qualquer questionamento jurídico. A controvérsia poderia, em tese, existir em outro campo – o dos direitos autorais. Como a canção em questão não foi composta por Claudia Leitte, mas por outros autores, são eles que detêm direitos morais sobre a obra. Caso esses autores se sintam lesados pela alteração da letra, a disputa cabível seria de natureza privada, a ser resolvida no âmbito da propriedade intelectual, podendo resultar, por exemplo, na proibição da execução da música com letra modificada ou em sua retirada do repertório da artista.

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Um eventual conflito entre intérprete e autores diz respeito à integridade da obra e aos limites contratuais ou legais de sua execução. Não envolve, nem de longe, racismo religioso, intolerância ou violação de direitos coletivos difusos, como pretende o MP baiano. Misturar essas esferas é um erro conceitual grave, que fragiliza tanto a proteção à liberdade religiosa, princípio fundamental em um Estado de Direito, quanto a seriedade do combate ao preconceito religioso real, que atinge de forma especialmente dura as religiões de matriz africana no Brasil.

Casos de destruição de terreiros, ameaças a lideranças religiosas e violência simbólica ou física são fatos documentados e exigem resposta firme do Estado. Justamente por isso, banalizar o conceito de intolerância religiosa, esticando-o até abarcar uma mudança de letra motivada por fé pessoal, é um desserviço à própria causa que se pretende defender. O episódio expõe o risco de se instrumentalizar o discurso do racismo e intolerância religiosa de forma seletiva, protegendo determinadas crenças enquanto outras passam a ser tratadas como ilegítimas ou passíveis de censura.

Ao converter uma divergência religiosa em litígio judicial milionário, o Ministério Público corre o risco de deslegitimar sua atuação futura em casos genuínos de intolerância. Mais grave ainda, abre precedente perigoso para que a expressão pública da fé – qualquer fé – passe a depender da chancela estatal. A Constituição garante a liberdade de consciência, de crença e de expressão artística. Punir alguém por manifestar sua fé, sem ofensa ou incitação ao ódio, não é proteger direitos coletivos – é violá-los.

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