
Rodrigo Pacheco deixou a presidência do Senado, no início de 2025, sem ter conseguido fazer andar o projeto que ele vê como seu maior legado, mas nem de longe isso significa que o senador mineiro tenha desistido de sua menina dos olhos. Agora, ele é o presidente de uma comissão especial que analisa o Projeto de Lei 4/2025, vendido como uma “reforma” do atual Código Civil, vigente desde 2002. No entanto, o texto vai muito além de uma simples atualização: trata-se, na verdade, de um novo Código Civil – novo e revolucionário, no pior sentido da palavra, como algo que destrói tudo o que existiu antes para instalar em seu lugar um ordenamento gerado por pura e simples ideologia.
Toda a onda de críticas surgida assim que a sociedade conheceu o resultado de brevíssimos (para as dimensões e a importância de um Código Civil) oito meses de trabalho de uma comissão de juristas, presidida pelo ministro do STJ Luís Felipe Salomão, não incomodou Pacheco. Ele seguiu em frente, desqualificando as críticas ao chamá-las de fake news (ainda que não houvesse mentira alguma sobre as possíveis consequências da aprovação do projeto), e deve usar a presidência da comissão especial para fazer seu projeto avançar com celeridade e com o mínimo possível de alterações – e, não havendo alterações, o Brasil poderá dar adeus ao Direito Civil como o conhecia.
Os problemas do “Código Pacheco” não estão em trechos específicos, mas na mentalidade revolucionária – no pior sentido da palavra – que norteou sua elaboração
Veja-se, por exemplo, o estrago que o projeto fará no Direito de Família. A Associação de Direito de Família e das Sucessões (Adfas) fez um pente-fino no Código Civil de Pacheco e encontrou uma série de inovações que têm tudo para fragilizar completamente os laços familiares, cuja solidez é base obrigatória para uma sociedade sadia. “Direitos da amante”, divórcio unilateral, registro de filhos de uniões poliafetivas (hoje apelidadas de “trisal”), a introdução do estado civil de “convivente” e do confuso conceito de “família parental”, e várias outras novidades foram introduzidas no projeto. O arcabouço intelectual que orienta as mudanças é o reconhecimento do afeto como único fundamento da estrutura familiar – o que pode servir tanto para a judicialização do reconhecimento de determinada relação, com todas as obrigações legais que isso acarreta (pensões e heranças, por exemplo), quanto para a dissolução de vínculos, que poderia ser alegada na Justiça para alguém se eximir dessas mesmas obrigações. Não é preciso usar demais a imaginação para prever as consequências de se apoiar todo o Direito de Família em um sentimento potencialmente volúvel e passageiro.
Em outro campo bem diverso, o do chamado “Direito Digital”, as inovações não são menos perigosas. Essa área ganha um livro específico dentro do “Código Pacheco”, e que em muitos aspectos impõe um regime de censura que supera até mesmo os delírios mais autocráticos dos defensores da “regulação das mídias sociais” no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Regimes draconianos de responsabilização e interferência externa sobre o modelo de negócios, com o surgimento de direitos vagos como “privacidade mental”, “neurodireitos” e “transparência algorítmica”, têm tudo para criar um sistema ainda mais intenso de censura e tutela sobre o que os pobres brasileiros deveriam poder ver nas mídias sociais.
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Estes são apenas dois exemplos, que estão longe de ser os únicos. Na “Carta de Salvador”, a Federação Nacional dos Institutos dos Advogados (Fenia) chama o novo Código Civil de “ameaça grave ao Estado Democrático de Direito e aos valores fundamentais da sociedade brasileira”, alertando para o que, na prática, seria a destruição, no Brasil, do pacta sunt servanda, um princípio jurídico que remonta ao Direito Romano e pelo qual as partes signatárias de um acordo são obrigadas a cumpri-lo. Isso porque o projeto abusa de conceitos vagos para dar ao Judiciário a capacidade de reescrever praticamente tudo o que desejar em termos de contratos, bastando que alguém reclame, mesmo sem razão. Tamanha discricionariedade representaria o fim da segurança jurídica, com a substituição de regras objetivas pela subjetividade do julgador de plantão. Também é fácil imaginar o que isso representaria em termos de obstáculos à liberdade econômica, e a consequente fuga de capitais e investimentos.
Em 2012, quando era presidente do Senado, José Sarney tentou acelerar a tramitação de um novo Código Penal que era o suprassumo do absurdo jurídico, um texto também ideológico que não tinha nenhum tipo de proporcionalidade entre penas – por exemplo, deixar de socorrer uma criança, um inválido ou um ferido daria pena de 1 a 6 meses de prisão, ou multa, enquanto quem deixasse de socorrer animais poderia ficar na cadeia por até quatro anos. À época, o jurista Miguel Reale Júnior chamou o texto de “obscenidade” que “não tem conserto” – o relator Pedro Taques bem que tentou, alterando bastante o projeto, mas de fato Reale tinha razão, e o texto dorme hoje em alguma gaveta do Senado, só não tendo sido arquivado de vez por questões regimentais. Da mesma forma, na “Carta de Salvador”, a Fenia recomenda o arquivamento do “Código Pacheco”, já que seus problemas não estão em trechos específicos, mas na mentalidade que norteou sua elaboração. De fato, não há justificativa alguma para que se vire do avesso uma lei que é a espinha dorsal do ordenamento jurídico de um país, e muito menos que isso seja feito às pressas, evitando o diálogo amplo com a sociedade, como se houvesse – e há – algo muito sério a esconder dos principais interessados, os brasileiros.



