Por mais que se tente minimizar o efeito do julgamento realizado no Supremo Tribunal Federal sobre a competência para julgar crimes comuns conexos a crimes eleitorais, fato é que o combate à corrupção sofreu uma derrota avassaladora nesta quinta-feira. Por seis votos a cinco, os ministros do STF decidiram que, na existência de crimes comuns cometidos em conexão com crimes eleitorais – por exemplo, casos de corrupção em que o dinheiro da propina é usado para abastecer caixa dois de partidos e candidatos –, o processo inteiro tem de ser remetido à Justiça Eleitoral.
O que estava em jogo, pela letra fria da lei, era a interpretação do artigo 109, inciso IV, da Constituição, que lista as atribuições da Justiça Federal. Enquanto os advogados do ex-prefeito do Rio Eduardo Paes e do deputado Pedro Paulo Teixeira argumentavam pelo cumprimento do Código de Processo Penal e do Código Eleitoral, que determinam a unificação do processo, a Procuradoria-Geral da República defendia que a Constituição, com força superior aos dois códigos e promulgada depois deles, não apenas permitia, como também favoreceria o fatiamento dos processos, remetendo os crimes eleitorais à Justiça Eleitoral e os crimes comuns à Justiça Federal.
Como afirmamos em ocasião anterior, ainda que as duas interpretações sejam possíveis, a que une o processo sob a Justiça Eleitoral tem falhas conceituais, entre as quais a de transformar o crime mais grave, aquele que deu origem ao dinheiro ilícito, fraudando o poder público e o contribuinte, em algo subordinado à irregularidade eleitoral. Essa visão acaba tratando o caixa dois como se fosse um fim em si, e não um meio para algo maior: a manutenção do poder, que por sua vez dará mais oportunidades para a obtenção de favores e regalias por meio da corrupção.
Podemos dar como certa, daqui em diante, uma onda de confissões de caixa dois como nunca se viu neste país
Mas logo no início do julgamento se viu que não se tratava apenas da questão puramente constitucional: os brios pessoais dos ministros também se fizeram presentes, com reações das mais diversas às críticas – legítimas, ainda que duras, é preciso dizer – feitas pelos procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato. O episódio mais baixo foi protagonizado pelo ministro Gilmar Mendes, que insultou os procuradores, especialmente Deltan Dallagnol e Diogo Castor de Mattos, com termos como “gângster”, “gentalha” e “cretinos”.
Ainda que o julgamento propriamente dito tenha efeito apenas sobre o caso específico de Paes e Teixeira, ele estabelece uma jurisprudência pela qual os advogados dos muitos acusados e condenados da Lava Jato esperavam ansiosamente. Ainda que ainda haja incerteza sobre o alcance da decisão de quinta-feira, algo que só deve ser resolvido com a publicação do acórdão, o relator do caso, ministro Marco Aurélio Mello, já se adiantou e disse que pode haver anulação de sentenças dadas pela Justiça Federal, com todo o processo sendo remetido aos tribunais eleitorais para novo julgamento. E, ainda que o trabalho investigativo fique preservado em sua maioria, há provas importantes que também poderão ser descartadas caso sejam fruto de ações autorizadas por juiz federal, já que o STF decidiu que a competência é da Justiça Eleitoral.
Podemos dar como certa, daqui em diante, uma onda de confissões de caixa dois como nunca se viu neste país. Não porque os acusados ou condenados tenham, repentinamente, adquirido alguma decência que os leve a admitir crimes, mas porque este será o caminho para tirar das mãos da Justiça Federal processos que ainda estejam em andamento, reiniciando tudo de novo em uma corte diferente, pouco preparada para analisar crimes comuns, cuja composição muda com frequência e que inclui até mesmo integrantes que não são juízes, mas advogados eleitoralistas. Quem está sob investigação, é réu ou já foi condenado por crime eleitoral, mas também está encrencado com a Justiça Federal por crimes como corrupção ou lavagem de dinheiro, tentará estabelecer uma conexão entre os crimes, para que o processo na Justiça comum seja interrompido (ou, caso tenha havido condenação, esta seja anulada) e a corte eleitoral assuma todo o trabalho.
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A força-tarefa da Lava Jato fez um trabalho exemplar quando buscou investigar apenas os crimes comuns, como corrupção e lavagem de dinheiro, e não os crimes eleitorais como o caixa dois. O foco na origem dos recursos, e não na maneira como foram usados, pode salvar parte do trabalho e impedir a anulação de julgamentos já realizados. Mas, caso um magistrado entenda que estes crimes estão ligados a alguma irregularidade eleitoral, de pouco terá adiantado o trabalho diligente da força-tarefa para não entrar na seara dos crimes eleitorais: haverá retrabalho e um novo julgamento, com todos os riscos que isso comporta, como a lentidão e, na pior das hipóteses, a impunidade.
O Congresso Nacional reagiu prontamente, com parlamentares tanto de apoio ao governo Bolsonaro quanto de oposição defendendo projetos de lei que alterem o Código Eleitoral e o Código de Processo Penal para que a Justiça Eleitoral julgue apenas os crimes eleitorais, enquanto os demais serão responsabilidade da Justiça Federal. Previsão semelhante consta do projeto anticrime apresentado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, semanas atrás. Aprovar tais textos resolveria qualquer controvérsia quanto à competência de cada tribunal, garantindo a normalidade para o futuro, mas provavelmente o STF seria acionado para que os processos antigos, aqueles iniciados antes de uma eventual mudança no CPP e no Código Eleitoral, permaneçam unificados na Justiça Eleitoral, em obediência à jurisprudência estabelecida nesta semana. O estrago está feito: resta esperar que não seja tão catastrófico quanto parece ser neste momento.
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