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No dia 13 de julho próximo, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, completa 20 anos. Embora reconhecido por suas virtudes – a exemplo da ousada doutrina da "proteção integral" – o documento desperta um misto de amor e ódio, sinal de que ainda é percebido pelo filtro das paixões e de que não está de todo incorporado às rotinas da sociedade.

Em duas décadas, incontáveis vezes o debate da redução da maioridade penal veio à baila, não raro de forma ingênua e reacionária. Tão frequente quanto são as situações em que, simpáticos ou não ao estatuto, nos sentimos nas baias do fracasso, como se nenhum passo à frente tivesse sido dado até agora. Nessas horas, a tentação é partilhar da ideia de que o ECA, perfeito na forma, ainda não chegou à realidade. Às falas.

O estatuto gerou uma rede – e uma rede que ultrapassa a estrutura formada por conselhos tutelares, casas-lares, promotorias e varas da infância. Para não poucos, esse documento é uma razão de existir, um substitutivo das grandes ideologias. É comum encontrar defensores incontestes do documento – um documento que carregam debaixo do braço e cuja letra sabem de cor. Enfim, poucas causas, na era pós-Muro de Berlim e pós-URSS, despertam tamanha entrega.

Não por menos, a organização social gerada pelo estatuto serve de inspiração para outros movimentos ainda púberes. É o caso da Secretaria Nacional da Juventude, cujos líderes já declararam invejar a estrutura do ECA, planejando pegar carona em seus ganhos. E da recém-criada Lei Maria da Penha. Diz-se que se houvesse na proteção à mulher mecanismos semelhantes aos destinados à infância e à adolescência, seria possível ter mais dados sobre as agressões e mais eficiência na sua punição.

Em suma, os bons ventos deixados pelo ECA sopram sempre. Os maus sopram de vez quando, mas com a força de um tufão. Esta semana, a Gazeta do Povo voltou a publicar reportagem sobre a morosidade do sistema de proteção aos pequenos. Levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta que processos de crimes contra a criança criam mofo e poeira em meio às pilhas de processos judiciais, relegados à desimportância.

Quando os processos estão próximos de serem julgados, muitos meninos e meninas já se veem avizinhados do estágio adulto. É grave. A essa altura, milhares perderam a chance de serem adotados, pois a destituição do poder pátrio, condição para que possam recomeçar sua história familiar, demora, literalmente, uma vida até ser julgado.

É de notícias como essa que emana uma certa ressaca em torno do ECA. Respeitado por professores, soletrado por conselheiros tutelares – em sua maioria homens e mulheres das comunidades – o estatuto fracassa justamente onde deveria ser mais respeitado: nas instâncias superiores.

Pode-se alegar que é uma questão estrutural – que outras camadas da sociedade são vitimadas pelo mesmo mal. Mas, com base no próprio estatuto, não se pode conceber que a burocracia da Justiça acentue o problema da infância. Por uma razão prática: porque fere os direitos humanos e porque acentua um dilema que compromete a própria nação.

Ora, o mesmo país admirado por ter criado o estatuto é o país que não consegue fazer vingá-lo entre juízes e técnicos de alto gabarito. O mesmo país que consegue cativar conselheiros tutelares para a causa da infância – fazendo com que admiravelmente falem sobre a questão com a fluência de um douto – é o que permite a uma vara especializada na infância não ter funcionários que, céus, desconheçam o ECA. É o que aponta a pesquisa do CNJ.

Olhando assim por alto, fica a tentação de acreditar que muito se fala do ECA da boca para fora. Que é brincadeira de mau gosto. Mas seria injusto dar o jogo por perdido. Tudo leva a crer que a turma do estatuto – essa pequena multidão que transformou a infância na ideologia do século 21 – vai fazer vergar a resistência da Justiça e garantir às crianças o que é de direito. Tomara, para tanto que, não sejam necessários mais 20 anos.

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