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Precisou a Maria Bethânia para o Brasil se dar conta de que alguma coisa está fora da ordem nos programas de incentivo à cultura. O fato virou o prato do dia: a cantora baiana teve aprovado pelo governo seu pedido de captação de R$ 1,35 milhão para a produção de um blog de poesia. O projeto – sob a batuta do cineasta Andrucha Waddington – oferece vídeos da intérprete declamando poesias, uma para cada dia do ano. Grita geral: "Carcará – pega, mata e come..."

O argumento que corre pelas veias abertas da Nação é que Maria Bethânia não precisa de dinheiro público, pois é intérprete de sucesso, a maior da nossa lavra. E que não faz sentido o bolso do contribuinte ser raspado para o financiamento do que mais parece um capricho da dupla Bethânia-Andrucha. Nem blogs custariam tanto nem a declamação de poesias precisaria dessa montanha de reais.

O debate está pobre, convenha-se, mostrando que grassa a ignorância geral sobre o mercado da cultura, cujas regras são tão ou mais arbitrárias do que os bombardeios na Líbia. Exato – há um mercado de guerra chamado cultura. O blog da Bethânia e todo o resto – seja um disquinho chinfrim financiado pela renúncia fiscal, seja o filme Cisne Negro, de Darren Aronofsky, fazem parte desse mundo que é nada menos do que a terceira maior indústria do mundo, a do entretenimento, atrás da indústria bélica e da automobilística.

Foi-se o tempo em que o setor atendia pelo nome de artes, espetáculos e variedades, como se acostumou a pensar desde que os filósofos da Escola de Frankfurt deitaram o olho numa sala de cinema. Além de abrigar áreas polpudas como o esporte europeu, os estúdios de Hollywood, a moda e o turismo em geral, a indústria do entretenimento inclui estranhos no ninho, como o jornalismo e a alta cultura. Leia-se filmes de arte que vão ao Festival de Sundance e as exposições do britânico Damien Hirst. É um vale-tudo.

As leis de incentivo – nascidas para levar as empresas a investirem no setor – não dão conta do entretenimento, esse território tão agressivo quanto as negociatas dos cartolas do boxe internacional. A relação paternalista do Brasil com as artes agrava a situação, condenando-nos à patrulha ideo­­­lógica, à mesquinharia e ao atropelamento das próprias regras da arte.

Aqui, a cultura sempre foi tutelada pelo estado e fadada a esmolas. Apenas 0,2% dos gastos públicos são para o setor, enquanto na Inglaterra movimentam 7% do PIB. Em resposta ao desprestígio histórico com as artes, brasileiros gastam 4% do ganham com cultura, não importa o tamanho do salário. Ricos e pobres: empate. Ah, os 4% incluem despesas com celulares e aparelhos de som e vídeo. Choremos.

O povo não investe. Filantropia para manter orquestras e grupos de teatro só se for piada. Sobra a Lei Rouanet e suas costas largas. Mas a lei é torta: não permite juízo de valor, o que na razão tupiniquim incorreria em discriminação severa. O preço é que para movimentar o dinheiro do incentivo tem de se abrir mão da curadoria e da crítica, práticas que permitem o mundo da cultura avançar na linguagem e no que lhe é próprio: a invenção. Solução? Fazer de conta que nossa revolução à Mao Tsé-tung é um espetáculo de democracia, mereça ou não algum crédito nos compêndios de História da Arte.

Não é toda a ópera. A lei anda tonga da mironga e o mercado de cultura no Brasil também. Quando um produtor faz um projeto, embanana-se com os orçamentos, pois o que hoje custa 20, em dois meses custará 40. Daí as contas apresentadas à Lei Rouanet serem mirabolantes, pois tentam prever os humores de músicos, pesquisadores, donos de estúdios. Não é sério. Nem justo.

Diante desse quadro, não causa espanto que os grandes estejam cada vez mais reivindicando a parte que lhes cabe no bolo das verbas da cultura. Eles pagam impostos, têm um trabalho provado pela crítica e não raro veem produções sem nenhum refino – que concorrem para o ferro- velho da indústria – serem premiadas com verbas. A alta cultura não é prima donna, é prima pobre.

Bethânia é um caso: em desacordo com promoção da baixaria cultural, saiu de uma grande gravadora e se lançou em projetos autênticos como o Brasileirinho – que resgatou das trevas a música cabocla e provou a existência de Deus com a interpretação de Melodia sentimental, de Villa-Lobos. Agora promete poesia, dando continuidade a seu legado.

Ora, o setor menos privilegiado da cultura nacional é a poesia. Dizem até que está morta. Só vendem os poetas idos – Drummond, Cecília, Vinicius, Quintana, Cabral, Bandeira. Declamar na escola? Coisa da vovó. Poeta na tevê? Antes uma mulher-fruta. Ao emprestar sua voz, carisma e fortuna criativa aos versos, Bethânia faria um bem danado ao país, protegendo-nos da nossa insanidade cultural.

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