
Ao fim do julgamento no STF sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, o ministro Dias Toffoli, relator de uma das ações que estavam em análise, deixou escapar uma furtiva lágrima. “Muito me honra fazer a leitura dessa tese, e digo, senhor presidente, que muito me honra fazer parte desta corte”, afirmou o ministro ao colega Luís Roberto Barroso. Era a emoção de perceber que, ao contrário da poção do amor da ópera de Gaetano Donizetti, o elixir da censura preparado por ele e mais sete colegas irá mesmo funcionar em toda a sua plenitude.
Restaram vencidos André Mendonça, Edson Fachin e Nunes Marques, o trio que votou pela sensatez ao considerar constitucional a legislação sobre a responsabilização de provedores pelos conteúdos publicados por usuários. Os outros oito integrantes do STF votaram pela inconstitucionalidade, total ou parcial, do artigo 19. Após quatro horas de reunião entre os ministros para um consenso a respeito da tese a adotar, o texto final impôs o chamado “dever de cuidado”, em que os provedores ficam obrigados a derrubar por conta própria conteúdos que configurem condutas e atos antidemocráticos; terrorismo ou atos preparatórios de terrorismo; induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou automutilação; incitação à discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, sexualidade ou identidade de gênero; crimes praticados contra a mulher em razão da condição do sexo feminino, inclusive conteúdos que propagam ódio ou aversão às mulheres; crimes sexuais contra pessoas vulneráveis, pornografia infantil e crimes graves contra crianças e adolescentes; e tráfico de pessoas.
Toffoli chora porque triunfou: ele e a corte que integra com tanto orgulho completaram a missão autoatribuída anos atrás e se tornaram, de fato, “editores de um país inteiro”
Além disso, o modelo de “notice and takedown”, previsto no artigo 21 do Marco Civil da Internet e que previa responsabilização caso o provedor mantivesse conteúdos no ar mesmo após notificação extrajudicial, foi bastante ampliado. Se antes ele se aplicava apenas a violações de direitos autorais e à chamada “pornografia de vingança”, agora a responsabilização vigora em quaisquer casos de “danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros em casos de crime ou atos ilícitos”. Por fim, o que antes era a regra geral – a responsabilização apenas em caso de descumprimento de decisão judicial de remoção de conteúdo – virou exceção: o texto do artigo 19 valerá apenas para os casos de crimes contra a honra, como calúnia, injúria e difamação.
Nunca será demais recordar os inúmeros absurdos desta decisão. Novamente, o controle de constitucionalidade é pervertido para que juízes não eleitos possam legislar no lugar dos representantes escolhidos pelo povo – e que já se pronunciaram sobre como deveriam ser as regras de responsabilização na internet, por mais que tais regras não coincidam com as preferências pessoais dos ministros. Ressalte-se a ignorância jurídica de quem elenca, na lista dos itens colocados no modelo de “dever de cuidado”, crimes que não podem ser cometidos pela internet, como os ditos “atos antidemocráticos” – as redes podem servir, no máximo, para a instigação, mas ninguém dá golpe de Estado pelo Instagram ou pelo X, algo que certamente será ignorado pelos novos censores, já que a suposta “defesa da democracia” será a porta mais escancarada para a mordaça. E o grande dano, sem a menor sombra de dúvida, é a difusão da censura a debates e críticas que os ministros querem calar, tarefa que agora eles terceirizaram para os provedores e mídias sociais.
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Em casos como pornografia infantil e aliciamento para o terrorismo, é sensato impor o dever de cuidado. Mas qualquer brasileiro minimamente familiarizado com os debates sobre liberdade de expressão e com a prática recente do Ministério Público e da Justiça sabe que conceitos abertos como “atos antidemocráticos” ou “incitação à discriminação” têm sido usados para cassar discursos e críticas legítimos, mas que irritam certas autoridades ou grupos. São esses conteúdos que os provedores se sentirão tentados a apagar por conta própria para não correr o menor risco de problemas judiciais. A crítica mais ácida a um político ou juiz; a contestação a certos comportamentos; argumentos sobre temas controversos e pesquisas científicas cujas conclusões desagradem militantes identitários – qualquer publicação deste teor, que seria legítima em qualquer ordenamento jurídico preocupado em proteger a liberdade de expressão, está ameaçada. São tantas as possibilidades de censura que nossa análise está longe de terminar por aqui.
Toffoli chora porque não tem mais nada a pedir. O ministro triunfou: ele e a corte que integra com tanto orgulho completaram a missão autoatribuída anos atrás e se tornaram, de fato, “editores de um país inteiro”, ainda por cima sem o ônus de assumir repetidamente a responsabilidade primária pela censura, que agora será feita pelos provedores. Já pela liberdade de expressão, choram muito poucos – e o fato de serem poucos certamente deu aos censores supremos mais força e a convicção de que poderiam fazer o que bem entendessem. E este choro, pelo andar da carruagem, logo terá de ser guardado no íntimo de cada um porque, se for exteriorizado, possivelmente acabará flagrado por algum algoritmo ou fiscal militante, e sumariamente apagado.



