
A Câmara dos Deputados aprovou, na madrugada de quarta-feira, o “PL da Dosimetria”, que nasceu como “PL da Anistia”, mas foi desidratado ao longo de sua tramitação, especialmente pelo relator, Paulinho da Força. Foram 291 votos favoráveis, 148 contrários (incluindo alguns poucos de deputados da oposição, para os quais apenas a anistia era uma opção válida) e uma abstenção. O projeto altera trechos da Lei de Execução Penal a respeito da progressão de regime prisional e insere um novo artigo no Código Penal que altera o cálculo da pena por crimes contra o Estado Democrático de Direito – o efeito prático é reduzir a pena de vários dos condenados dos show trials do 8 de janeiro e do suposto golpe.
A rigor, dosimetria é um cálculo de pena que cabe à Justiça, e se faz caso a caso; o juiz ou colegiado parte da pena-base prevista para os crimes pelos quais uma pessoa é condenada, considera agravantes, atenuantes e outros critérios, e por fim define a pena exata. É algo que só o Judiciário, nunca o Legislativo, pode fazer. Para evitar o que poderíamos chamar de “ativismo legislativo”, com parlamentares tomando o lugar de juízes, o Congresso optou por alterar a lei penal de forma que pudesse retroagir em benefício dos réus, deixando para o Supremo o trabalho de realizar a dosimetria propriamente dita, à medida que os advogados pedirem a redução de pena, baseando-se na nova legislação, caso entre em vigor.
Dosimetria pode até ser o paliativo possível no momento diante da impossibilidade de se fazer justiça, mas não corrige as barbaridades impostas pelo STF a centenas de brasileiros
No entanto, as mudanças podem ter ido muito além do que seria necessário para contemplar apenas os casos do 8 de janeiro e do suposto golpe, e ainda há muitas dúvidas a respeito da possibilidade de a lei facilitar a progressão de regime para condenados por crimes como o tráfico de drogas, que não consta nos Títulos I e II do Código Penal. Muito mais relevante é a determinação de que, no caso de condenação simultânea por abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado, não haja o acúmulo de penas, mas o chamado “concurso formal”, que já existe e é previsto no Código Penal, com o crime mais grave “absorvendo” o menos grave. Esta havia sido, inclusive, a posição minoritária de alguns ministros em julgamentos do 8 de janeiro, mas que foi vencida pela sanha vingativa de quem queria fazer dos manifestantes troféus de guerra da “defesa da democracia”. Além disso, o projeto prevê a possibilidade de redução de pena quando os crimes forem “praticados em contexto de multidão”, desde que o réu não tenha liderado ou financiado o ato.
Essas duas alterações devem reduzir drasticamente as penas de alguns condenados pelo 8 de janeiro e pela suposta trama golpista – Jair Bolsonaro, por exemplo, que foi condenado a 27 anos e 3 meses de prisão, e só teria direito a regime semiaberto em 2033, poderia ter a pena recalculada e, com isso, reduzir para 2 anos e 4 meses o tempo de regime fechado. Outros casos tão absurdos que provocaram espanto até nos que aplaudiram e justificaram os excessos do STF, como o da cabeleireira Débora e de muitos outros manifestantes condenados a penas maiores que a de muitos facínoras, também poderão ser revistos.
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A oposição, com algumas pouquíssimas exceções, votou a favor do PL da Dosimetria por considerá-lo o avanço possível no momento, sem descartar uma anistia futura, quando o cenário político for mais favorável. É uma avaliação válida – qualquer tempo a menos de prisão é bem-vindo quando se trata de pessoas condenadas injustamente, em processos viciados, por crimes que não cometeram. Mas isso não apaga a enorme injustiça cometida nos show trials conduzidos no STF. Justamente porque se trata de processos viciados em que o devido processo legal esteve ausente, com desrespeito ao princípio do juiz natural, negação do direito à ampla defesa, ausência da individualização de conduta, falta absoluta de provas que ligassem os réus aos crimes a eles imputados, a única solução realmente justa seria a anulação de todos os atos processuais – por muito menos que isso o Supremo tem anulado processos da Lava Jato que, estes sim, seguiram corretamente todos os trâmites processuais e garantiram a ampla defesa dos acusados.
A anistia não é uma “pauta extremista”, como afirmou Paulinho da Força em seu relatório. É a única solução justa que o Congresso pode oferecer, já que o STF se recusa a reconhecer e corrigir seus abusos. A simples redução de pena não basta, pois mantém as condenações, com todas as suas consequências jurídicas e práticas – e um único dia de prisão para quem foi injustamente condenado já é um excesso inadmissível. O PL da Dosimetria pode até ser o paliativo possível no momento diante da impossibilidade de se fazer verdadeira justiça, mas não passa de remendo que atenua as barbaridades impostas pelo STF a centenas de brasileiros, embora esteja longe de corrigi-las.



