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Presidente do Senado Federal, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
O presidente do Senado, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), chamou de “fake news” as críticas ao novo Código Civil.| Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senad

Até o momento são pouquíssimas as vozes na opinião pública (entre elas, a desta Gazeta do Povo) que têm chamado a atenção da sociedade para a proposta de um novo Código Civil atualmente em elaboração por uma comissão de juristas, convocada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) – tecnicamente, trata-se de emendar a Lei 10.406/02, mas são tantas as alterações que o apelido “novo Código Civil” se justifica plenamente, sendo usado até no site do Senado. Estas vozes têm denunciado tanto o conteúdo do relatório quanto a forma como ele está sendo levado adiante, sem a participação da sociedade, que receberá, quando muito, um texto já pronto que caberia aos representantes do povo no Congresso chancelar, rejeitar ou tentar emendar, embora neste caso sejam tantos os problemas que seria mais adequado falar em uma reescrita completa. A maneira como Pacheco reagiu quando os problemas deste novo Código foram trazidos à luz é um exemplo perfeito não tanto das falhas do relatório, mas de outro problema crônico do debate público nacional: a banalização e a distorção do termo “fake news”.

Pois foi exatamente essa a reclamação de Pacheco: no X (antigo Twitter), o presidente do Senado afirmou estar sendo “vítima de fake news, das mais irresponsáveis e levianas, afirmando que eu seria favorável à poligamia, à retirada de poder dos pais e à autonomia infantil para mudança de sexo”. Acrescentou, ainda, que tais “mentiras (...) têm como pano de fundo a atualização do Código Civil brasileiro, que será amplamente discutida pelo Congresso e com a participação de toda a sociedade”. A consequência lógica, como se vê por muitas das reações às mensagens de Pacheco, foi um clamor pela volta à pauta do PL 2.630/20, o chamado “PL das Fake News” ou “PL da Censura”.

Análises, opiniões, interpretações, conjecturas, nada disso poderia ser chamado de fake news – e isso independe de tais opiniões serem sensatas ou não, estarem corretas ou não, até mesmo de serem lícitas ou não do ponto de vista legal

Já há muito tempo a Gazeta do Povo vem alertando para o uso indiscriminado da expressão “fake news” para se desqualificar qualquer discurso que soe desagradável aos ouvidos de alguém, quando na verdade ele deveria descrever única e exclusivamente uma afirmação factual que seja evidentemente mentirosa. Análises, opiniões, interpretações, conjecturas, nada disso poderia ser chamado de fake news – e isso independe de tais opiniões serem sensatas ou não, estarem corretas ou não, até mesmo de serem lícitas ou não do ponto de vista legal. A própria natureza desse discurso analítico ou opinativo, que pertence ao campo das ideias, é diversa da simples narrativa, que pertence ao campo dos fatos e é passível de uma verificação objetiva que confirme ou negue sua veracidade. Esta última, sim, pode constituir fake news; aquele, jamais.

No caso do novo Código Civil, uma das críticas é realmente uma afirmação factual: a de que o novo código está sendo desenhado longe dos olhos da sociedade, por uma comissão de juristas, de forma apressada, sem a participação ativa dos brasileiros, ao contrário do que houve na última grande reforma desta lei, 20 anos atrás. Pacheco até o admite sem querer quando diz que “a atualização do Código Civil brasileiro (...) será amplamente discutida pelo Congresso e com a participação de toda a sociedade” – note-se o verbo no futuro. Mas, em todo o resto, estamos diante da pura análise opinativa.

Por exemplo, quando se afirma que o texto deixa brechas para o abortismo ao tratar o nascituro não como a vida humana em plenitude que ele já é, mas como potencialidade de vida humana pré-uterina ou uterina” (destaque nosso); quando se denuncia a possibilidade do  divórcio unilateral dispensando o consentimento e mesmo a presença do outro cônjuge; quando se alerta para ameaças à autoridade dos pais, com novos textos sobre a autonomia das crianças e adolescentes e sobre a perda do pátrio poder; ou quando se considera que outra inovação no direito de família, a “sociedade convivencial”, citada em vários artigos do relatório sem uma definição precisa, pode abrir às portas ao reconhecimento jurídico de uniões poligâmicas, estamos no campo da análise, da opinião, da conjectura baseada naquilo que o relatório prevê, mas não no campo das afirmações factuais puras e simples. Tais análises e opiniões podem até estar equivocadas, mas quem se dispuser a oferecer o contraponto haverá de admitir que estamos travando embate de ideias, e não realizando uma “checagem de fatos”. Chamar tais críticas de fake news, portanto, revela ou uma enorme ignorância sobre os tipos de discurso, ou uma enorme má-fé de quem quer desqualificar uma opinião por discordar dela, ou pelo menos uma cegueira motivada pelo apego, como pode até ser o caso de Pacheco, já que o novo Código Civil lhe é especialmente caro.

O recurso não é inédito, evidentemente, e pouco tempo atrás testemunhamos episódio idêntico quando a denúncia de uma nota técnica abortista do Ministério da Saúde foi classificada como fake news. Primeiro, tentou-se negar até a existência do documento; uma vez desmascarada essa afirmação, passou-se a alegar que a nota técnica não afirmava o que se atribuía a ela, uma legalização prática do aborto em qualquer idade gestacional. Aqui, novamente, entramos no campo da análise, lendo a nota técnica em conjunto com todas as outras normas sobre o atendimento à gestante vítima de violência sexual – como a dispensa de aviso à polícia – e chegando à conclusão, em nossa visão bastante lógica, de que estava aberta a brecha para o aborto sob demanda em qualquer etapa da gravidez, bastando uma alegação falsa de estupro. Novamente, não havia fake news de nenhum tipo ali – havia uma afirmação factual verdadeira, sobre a existência do documento, e uma análise opinativa a respeito de suas possíveis consequências.

O combate à mentira e às informações falsas é importante – embora a melhor forma de fazê-lo seja passível de discussão –, mas foi completamente distorcido graças à confusão (proposital ou não, pouco importa) introduzida em relação ao que agora se convencionou chamar de fake news. O que está sendo suprimido, agora, não é simplesmente a afirmação factual mentirosa, mas qualquer análise ou opinião incômoda sobre determinados temas, que são assim transformados em tabus inquestionáveis. Chamar de fake news uma afirmação da qual se discorde passou a ser muleta conveniente para escapar do debate enquanto se desmoraliza um opositor, ou até mesmo se invoca o braço estatal contra ele por manifestar certas opiniões. Um truque fatal para a liberdade de expressão, e que por isso se torna ainda mais criticável quando vem do presidente de um dos poderes da República.

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