
Enquanto condenavam o ex-assessor presidencial Filipe Martins e mais quatro réus do “núcleo 2” da suposta trama golpista, alguns ministros da Primeira Turma do STF sentiram uma necessidade irresistível de fazer um esclarecimento. “Não se cuida de vingança”, disse Flávio Dino; “a resposta estatal não é vingança”, afirmou o relator do caso, Alexandre de Moraes. Essa insistência no fato de o julgamento e a condenação não representarem vingança é algo que, em outras circunstâncias (leia-se um Judiciário respeitador do devido processo legal), seria completamente desnecessário; acontece que, desta vez, a sensação geral de que se trata, sim, de vingança é muito justificada.
Martins foi condenado a 21 anos e 6 meses de prisão, pelos crimes de golpe de Estado, abolição do Estado Democrático de Direito, dano qualificado, deterioração do patrimônio tombado e organização criminosa – pena idêntica à do coronel da reserva Marcelo Câmara, e um pouco menor que a punição aplicada ao general da reserva Mário Fernandes, ex-secretário-geral da Presidência (26 anos e 6 meses) e ao ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal Silvinei Vasques (24 anos). Marília Alencar, ex-diretora de Inteligência do Ministério da Justiça, foi condenada a 8 anos e 6 meses por organização criminosa e tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Por fim, o delegado da Polícia Federal Fernando Oliveira foi absolvido.
Não há justiça quando é preciso manter preso um investigado apesar de todas as evidências que desmontam a justificativa da prisão preventiva, e quando todos os princípios do Direito Penal são abolidos ao longo do processo e do julgamento
O caso de Filipe Martins é mais uma das aberrações jurídicas que têm marcado os inquéritos abusivos das fake news e seus derivados, a repressão aos atos de 8 de janeiro e os julgamentos do “golpe”. Ele foi preso preventivamente em fevereiro de 2024, sob a alegação de que havia risco de fuga, já que Martins teria integrado a comitiva presidencial que deixou o Brasil às vésperas do fim do mandato de Jair Bolsonaro. A viagem, no entanto, nunca existiu, e a defesa apresentou uma avalanche de provas atestando que Martins teria permanecido no país – a fraude de um registro de entrada nos EUA está sendo investigada. Mesmo assim, Moraes manteve Martins preso por inaceitáveis seis meses antes de soltá-lo, no que muitos entendem como tentativa de forçar uma delação, a exemplo do que havia ocorrido com o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Durante o julgamento desta semana, Moraes chegou a admitir a dúvida sobre a viagem, mostrando que, no seu Direito Penal bastante peculiar, o réu não tem direito nem mesmo ao benefício da dúvida.
Os detalhes específicos do caso de Martins são um acréscimo a uma acusação que, sabemos já há muito tempo, está repleta de inconsistências, a começar pelo fato de se basear quase que exclusivamente em uma delação marcada por mudanças de versão e até coação, já que Alexandre de Moraes chegou a insinuar que o pai, a esposa e uma filha do tenente-coronel poderiam ter problemas – e tudo isso devidamente registrado! Por muito menos, recorde-se, o STF anulou processos inteiros da Lava Jato ao inventar coações imaginárias contra advogados de grandes empreiteiras. Tudo isso sem considerar a violação ao princípio do juiz natural (já que Martins não tem prerrogativa de foro), e o fato de a lei penal brasileira não punir crimes que não tenham passado da fase de preparação – todos aspectos que já esmiuçamos à exaustão neste espaço.
VEJA TAMBÉM:
Portanto, vingança, sim – independentemente do que Dino e Moraes afirmem. Quando é preciso manter preso um investigado apesar de todas as evidências que desmontam a justificativa da prisão preventiva, e quando todos os princípios do Direito Penal são abolidos ao longo do processo e do julgamento, não se pode falar de “subjetividade do magistrado esterilizada”, como disse Dino, nem de “resposta estatal (...) dura”. Entramos no terreno do justiçamento puro, que inclui de vez o nome de Filipe Martins na lista de “troféus de guerra” expostos pelo Supremo em nome de uma “defesa da democracia” que, para ser bem-sucedida, exige a abolição daquilo mesmo que se diz proteger.



