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O ministro da Justiça, Flávio Dino.
O ministro da Justiça, Flávio Dino.| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Que autoridade, em qualquer lugar do mundo, em sã consciência, deixaria que se perdesse, pelo motivo mais fútil possível, documentação importantíssima para as investigações de um ataque à democracia e aos poderes constituídos? Ao que tudo indica, essa pergunta tem resposta: o ministro da Justiça do Brasil, Flávio Dino. Apesar de o Palácio da Justiça, sede do ministério, ter quase duas centenas de câmeras instaladas, a CPMI do 8 de Janeiro só recebeu imagens de quatro câmeras – e isso depois de muita insistência, já que Dino resistiu o quanto pôde a entregar até mesmo esse volume pífio de conteúdo, a ponto de os membros da CPMI terem de recorrer ao Supremo Tribunal Federal para conseguir a liberação das imagens.

Também só depois de muita pressão o ministro ofereceu uma explicação para que haja apenas essas imagens do Palácio da Justiça, que não chegou a ser invadido, mas teve janelas quebradas pelos manifestantes – de todos os ministérios da Esplanada, o da Justiça e o das Relações Exteriores são os mais próximos da Praça dos Três Poderes. Segundo Flávio Dino, os registros simplesmente se perderam porque é preciso liberar espaço periodicamente para novas gravações – no caso das imagens das quatro câmeras entregues, elas teriam sobrevivido por serem as que estavam em poder da Polícia Federal.

O simples bom senso mandaria que os arquivos de todas as câmeras fossem salvos já no dia seguinte ao da invasão da Praça dos Três Poderes, como auxílio às investigações. Em vez disso, o Ministério da Justiça deixou que tudo se perdesse

É uma justificativa que desafia toda a lógica. Qualquer um que tenha um dispositivo que armazena dados importantes, seja computador ou mesmo um smartphone, sabe da importância de ter esses dados salvos em um outro lugar, o chamado backup. Se fazemos isso com documentos pessoais de valor, quanto mais com as imagens de uma ação que o próprio governo afirmava ter interesse máximo em investigar e punir. O simples bom senso mandaria que os arquivos de todas as câmeras fossem salvos já no dia seguinte ao da invasão da Praça dos Três Poderes, como auxílio às investigações. Em vez disso, o Ministério da Justiça deixou que tudo se perdesse, como se fossem imagens corriqueiras do dia a dia de uma repartição pública cuja preservação não fosse justificada. Para adicionar insulto à injúria, Dino afirmou que o procedimento de apagar imagens antigas estava previsto no contrato com a empresa responsável pela manutenção do circuito interno do palácio, mas reportagem do jornal O Estado de S.Paulo mostrou que o contrato não tem nenhuma regra específica a respeito de prazos após os quais os registros podem ser deletados.

Sem as imagens, será muito difícil confirmar com algum tipo de evidência não testemunhal as alegações de que havia, dentro do Palácio da Justiça, tropas da Força Nacional que poderiam ter sido usadas para conter os invasores, mas não foram acionadas – este foi, por exemplo, o teor do depoimento do fotógrafo Adriano Machado, da agência Reuters, à CPMI em meados de agosto. Se verdadeiras, as afirmações reforçariam uma tese segundo a qual o governo teria deixado que o 8 de janeiro fosse mais grave do que poderia ter sido caso as forças de segurança interviessem e impedissem as invasões; afinal, quanto maior o caos provocado, segundo essa tese, mais justificativa haveria para se escalar a repressão aos manifestantes e, por extensão, ao bolsonarismo. Dino, obviamente, rejeita essa acusação, mas também deixou implícito que houve contingente não utilizado da Força Nacional ao alegar que necessitava de solicitação do governador do Distrito Federal para isso; no entanto, o artigo 4.º do Decreto 5.289/2004 afirma que a Força Nacional “poderá ser empregada em qualquer parte do território nacional, mediante solicitação expressa do respectivo governador de Estado, do Distrito Federal ou de ministro de Estado”, ou seja, ela poderia ter entrado em ação por iniciativa do ministro da Justiça.

A relutância inicial em entregar as imagens, e as justificativas pífias para que tão pouco material tenha sido colocado à disposição da CPMI mostram que Dino não tem a menor intenção de colaborar para jogar o máximo de luz sobre os eventos do 8 de janeiro – e não é sem motivo que juristas e membros da oposição já falem em crime de responsabilidade cometido pelo ministro. Como o jus sperneandi é para todos, Dino pode até chamar de “amigos dos terroristas” os membros da CPMI que o criticam, ou dizer que eles querem “ocultar a responsabilidade dos criminosos”; só não pode ignorar que foi ele mesmo, ao adotar essa postura desafiadora, quem criou o fosso no qual se meteu e cuja profundidade só aumenta à medida que as histórias mal contadas se acumulam.

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