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A chegada de uma mulher à Presidência da República é um fato cujo significado ainda parece escapar à Nação. Não é difícil entender por quê. Assim como os ingleses não viam em Margaret Thatcher, a "dama de ferro", um exemplar castiço do feminino no poder, mas um lorde trajando saias, os brasileiros enxergam em Dilma Rousseff algo como um tecnocrata de tailleur.

O presidente é uma mulher por acaso? Melhor não tropeçar nas tamancas para responder. Dilma foi programada para ser a primeira a chegar lá. A campanha recém-terminada buscou valorizar esse fato desde o ninho, mostrando-a dona de casa, mãe e avó – e vovó católica, que faz questão de batizado. Moderna, é amiga dos ex-maridos, o que a habilitaria a angariar simpatias entre todas as castas – das devotas às liberadas.

Mas é nítido que a rígida Rousseff não está à vontade nos cabelos, colares, saltos e atributos de mother power impostos pelo cabresto do marketing. Agora eleita, deve estar perto de se sentir tão aliviada quanto uma dama do século 19 ao retirar os espartilhos. Daqui para frente, vai mostrar o número que veste – o de uma mulher pouco dada a fanfarrices lulescas e que palmilhou, de salto baixo, as ladeiras da política e da economia.

Não deve ter se beneficiado de cafezinhos amigáveis em companhia de homens de preto, entre risinhos, baforadas e tapinhas nas costas. Tampouco podia fazer acordos no mictório, esse grande parlamento mundial. Teve de aprender a dominar planilhas e a enfrentar rinhas, o que a deve ter levado a se distrair sobre qual era mesmo a cor da estação.

Dilma, acrescente-se, é da geração "fala baixo senão eu grito". Formou-se nas rendas da resistência e da oposição, das quais não saiu sem sequelas. Não lhe peçam ternura, pois deve ter se endurecido. Tomara que não muito, pois entre seus deveres está a capacidade de conciliação. Mas o que está em jogo aqui não é estilo nem temperamento, mas o gênero – e esse não se apaga, use a moça salto agulha ou rasteira de couro.

A presidente não precisa ser doce, melíflua e lipoaspirada para ser reconhecida como mulher. Não deve se parecer nem à inflexível e alienada Rainha Vermelha nem à rarefeita e tola Rainha Branca do país de Alice. Negociar e chamar para a briga – não é de hoje – faz parte do rol de atitudes tanto de homem quanto de mulher. Mesmo assim, está declarada a tendência de ver em Dilma uma mulher masculinizada, prato-cheio para um arsenal de piadas que tendem a esvaziar o sentido de sua chegada ao Planalto.

Devagar. Uma mulher na Presidência da República é um fato com potencial para fazer avançar a representação feminina no cenário nacional. Esse desejo, aliás, havia muito era reprimido. Somamos boas décadas de apartheid feminino em cargos de liderança, uma soma de capítulos cujo conteúdo é capaz de nos encher de vergonha, posto que traduzem nosso atraso medieval.

Basta que se pense na luta da bióloga Berta Lutz, nos anos 20, pelo direito de votar. Nem Berta nem o Movimento Sufragista Feminino, contudo, figuram entre os personagens e fatos valorizados em nossas aulas de História. Se assim fosse, não soariam tão pouco familiares os nomes das eleitoras pioneiras, as potiguares Celina Guimarães Viana e Júlia Alves Barbosa. O mesmo se diga da primeira prefeita, Alzira Soriano – cassada por Getúlio Vargas; e de Carlota Pereira, deputada em 1933.

É certo que em outras instâncias a memória não nos trai tanto. A mulher é cultuada se bela, ousada e transgressora. A lista passa por Nair de Teffé, Chiquinha Gonzaga, Tarsila do Amaral, Adalgisa Nery, Leila Diniz. Mas restava, de fato, o vazio, preenchido sempre de forma rarefeita, das mulheres na política. Basta lembrar que nos anos 80, quando essa lacuna parecia perto de ser preenchida, chegou-se a dizer que o advento das mulheres era o prenúncio de numa nova Renascença.

Mas o mundo real é bem menos plástico. Elas são mais da metade da população brasileira, mas não passam de 10% das cadeiras do Congresso Nacional, ainda que por lei devam ocupar 30% das vagas. Não se trata de falta de gurias para a tarefa – elas estão muito bem postas na Medicina, no Direito e nas engenharias. Mas de certo faltam candidatas com destreza para circular num mundo cujas artimanhas têm muito a ver com a complacência e o camaradismo masculinos.

A expectativa é de que Dilma, no mais alto posto, seja qual for sua expressão corporal, guarda-roupa e palavreado, dissolva essa cultura e nos faça crer de novo que estar perto da vida, como elas estão, seja a grande diferença. Mulheres nos parecem primas-irmãs da justiça, da igualdade, da verdade. A tal da "imaginação no poder", frase pichada nos muros pelos revolucionários de 1968, tem muito a ver com elas. É um conceito que não cabe em planilhas, organogramas ou tampouco interessa ao Banco Mundial. Mas tende a ser um bom motivo para que 185.712.713 brasileiros – prévia do Censo 2010 – saiam da cama para trabalhar.

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