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O ex-presidente da Petrobras, Aldemir Bendine, foi condenado por corrupção em processo da Lava Jato pelo então juiz Sergio Moro.
O ex-presidente da Petrobras, Aldemir Bendine, foi condenado por corrupção em processo da Lava Jato pelo então juiz Sergio Moro.| Foto: Miguel Schincariol/AFP

Parece inimaginável que, em um país onde vigore o império da lei, um julgamento seja anulado porque o juiz seguiu estritamente as regras que regem o processo penal. Mas, no Brasil do Supremo Tribunal Federal, esse tipo de surrealismo se tornou realidade no dia 27, quando a Segunda Turma da corte anulou, por três votos a um, a condenação do ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine. Em março de 2018, o então juiz federal Sergio Moro havia condenado Bendine a 11 anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O TRF4 manteve a condenação, reduzindo a pena. Agora, o julgamento terá de ser refeito a partir da fase de alegações finais, graças a uma decisão em que o STF errou na dose, apegando-se a formalismos que causarão enorme insegurança jurídica, anulando julgamentos onde não houve nenhum tipo de irregularidade.

Bendine não era o único réu na ação penal em questão – também foram julgados o empreiteiro Marcelo Odebrecht; Fernando Ayres da Cunha Santos Reis, ex-presidente da Odebrecht Ambiental; o doleiro Álvaro Novis; o publicitário André Vieira da Silva; e Antonio Carlos Vieira da Silva Junior (o único a ser absolvido de todas as acusações). Deste grupo, Odebrecht, Ayres e Novis tinham feito acordos de colaboração premiada, homologados pelos tribunais superiores. Quando chegou o momento das alegações finais, a última etapa do processo antes da sentença, a defesa de Bendine pediu para entregá-las depois das alegações dos delatores, mas Moro negou o pedido.

Todo cidadão deve ter a chance de se defender, sempre que existir algo a incriminá-lo, em qualquer fase do processo

Ao decidir desta forma, Moro estava amparado no Código de Processo Penal, que prevê apenas a necessidade de a acusação se manifestar primeiro, seja oralmente, seja por escrito, com a defesa entregando seus argumentos por último. Esta fase do processo foi incluída no CPP em 2008 – antes, portanto, da lei das delações premiadas (12.850/13). Mas também esta lei não instituiu prazos diferentes para alegações finais de réus delatores e de réus não delatores. Mesmo assim, os advogados de Bendine recorreram ao Supremo, alegando que tinha havido cerceamento de defesa, já que eles não teriam como refutar qualquer nova afirmação feita pelos delatores que pudesse incriminar seu cliente. A argumentação foi aceita por Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia. Ficou sozinho o relator, Edson Fachin.

O que está em jogo aqui é o direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa, consagrados no inciso LV do artigo 5.º da Carta Magna e sem os quais o devido processo legal dá lugar ao arbítrio. Isso significa que ninguém pode ser levado diante das autoridades, seja durante a investigação, seja no julgamento, sem saber por que está sendo investigado ou quais as acusações que pesam contra si. Todo cidadão deve ter a chance de se defender, sempre que existir algo a incriminá-lo, em qualquer fase do processo. A pergunta que os ministros se propuseram a responder é: o simples fato de réus não colaboradores terem de fazer suas alegações finais ao mesmo tempo em que réus colaboradores representa uma agressão a direitos básicos, um cerceamento de defesa?

Esta situação pode, sim, acontecer. Normalmente, se nas delações há qualquer elemento que incrimine outros réus no mesmo processo, um trabalho de acusação bem feito já terá incluído esses fatos na peça entregue à Justiça, e à qual a defesa tem acesso antes de oferecer as suas alegações finais, e é por isso que a juíza Gabriela Hardt, que negou recurso semelhante de Lula no processo do sítio de Atibaia, afirmou que “defesa do acusado colaborador não é acusação”. Mas também é perfeitamente possível que, exatamente no momento das alegações finais em um processo de vários réus, um deles, que tenha feito colaboração premiada, resolva trazer à luz um fato novo, uma evidência que não havia sido mencionada até aquele momento e que afete a situação de outro dos corréus. Em uma situação como esta, é imperativo que o acusado atingido tenha direito a se defender desta nova alegação, e bons magistrados, mesmo sob as regras atuais do CPP, saberiam perceber essa situação e conceder prazos adicionais. Mas, se isso não ocorresse, estamos, sim, diante de um cerceamento de defesa, circunstância que torna nulo um julgamento.

É por isso que, buscando salvaguardar o contraditório e a ampla defesa, faz sentido que o Supremo adote, como uma precaução que impeça esse tipo de cerceamento de defesa, uma norma que permita a réus não delatores fazer suas alegações finais apenas depois daquelas oferecidas pelos réus que fizeram a colaboração premiada. Aqui, não se trata de legislar indevidamente, mas de proteger garantias constitucionais. Que essa ordem seja seguida a partir de agora para os processos que estão em curso, ou para futuros julgamentos, é muito razoável.

Dito isso, qual seria o procedimento a adotar para julgamentos já encerrados, como foi o caso do recurso de Bendine? Foi aqui que os ministros se equivocaram. Os magistrados precisariam verificar se, nas alegações finais dos delatores, efetivamente houve a inserção de novas informações e evidências que incriminassem outro dos réus, e se esses elementos foram usados pelo juiz na hora de proferir sua sentença. Em caso positivo, seria necessário, de fato, refazer o julgamento a partir das alegações finais; mas, na ausência de tais “novidades”, não haveria motivo para qualquer nulidade. No entanto, não foi isso o que a Segunda Turma do STF fez, preferindo julgar a questão de forma abstrata.

Ao anular o julgamento de Bendine sem ter feito a avaliação concreta do caso, decidindo pela nulidade apenas porque não houve o prazo adicional para suas alegações finais, sem verificar se ele realmente foi prejudicado pela decisão de Moro, a Segunda Turma estabeleceu uma retroatividade puramente formalista na norma que acabou de estabelecer. Ela é formalista porque se apega apenas à questão dos prazos e desconsidera totalmente a existência de dano concreto ao réu. Ou seja, todos os processos já julgados onde esta nova norma não foi adotada poderão ser anulados, mesmo naqueles casos em que não tenha havido prejuízo real ao acusado não delator. Afinal, bastará à defesa alegar apenas que seus clientes não tiveram o prazo adicional para responder a eventuais novas acusações feitas pelos réus delatores – ainda que não tenha surgido absolutamente nada de novo que merecesse defesa.

A decisão da Segunda Turma se apega apenas à questão dos prazos e desconsidera totalmente a existência de dano concreto ao réu

Cármen Lúcia estava certa ao afirmar, durante o julgamento, que esta é uma situação relativamente nova – ainda que a lei das delações premiadas seja de 2013 e inúmeros processos tenham sido conduzidos de acordo com o CPP sem que se cogitasse a possibilidade de cerceamento de defesa. Portanto, era necessário dar uma resposta, e o Supremo, como guardião das garantias constitucionais que incluem o contraditório e a ampla defesa, poderia dá-la, mas a Segunda Turma errou grosseiramente na dose quando, em vez de apenas estabelecer uma norma para ser seguida daqui em diante, criou jurisprudência que embasa nulidades mesmo onde não houve prejuízo algum aos réus.

No caso de Bendine e de vários outros condenados na Lava Jato cujos julgamentos podem ser refeitos, de pouco adianta afirmar que isso não significa a inocência dos réus, que o conjunto probatório contra eles continua sólido o suficiente para embasar a repetição das condenações. O retrabalho que a Justiça terá na primeira e segunda instâncias é o de menos. O verdadeiro, o enorme problema é a insegurança jurídica criada pelos ministros, porque estão prestes a determinar a aplicação deste novo procedimento de modo retroativo, à medida que os recursos forem chegando à corte, anulando julgamentos sem nem olhar para as peculiaridades de cada um deles. O STF deveria ser a instância pacificadora e estabilizadora da sociedade, mas são decisões como esta que fazem da corte, hoje, um dos principais fatores de instabilidade no país.

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