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O ministro Gilmar Mendes durante sessão do STF.
O ministro Gilmar Mendes durante sessão do STF.| Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Independentemente do governo que entra ou do governo que sai, é certo em Brasília que partidos nanicos, incapazes de conquistar uma parcela decente do voto popular para ter representatividade relevante no Congresso, seguirão buscando o Supremo Tribunal Federal para conquistar na canetada o que não conseguem pela via legislativa. E é igualmente certo que continuará havendo ministros dispostos a atender tais pedidos, fazendo-se de legisladores e atropelando os quase 600 parlamentares eleitos pelo povo, definindo políticas públicas, de questões sanitárias a política migratória, passando, evidentemente, pelo orçamento. É o que acaba de acontecer com uma liminar concedida por Gilmar Mendes na noite deste domingo, dia 18.

A PEC fura-teto, que havia passado pelo Senado com bastante folga, não está recebendo o mesmo tratamento na Câmara dos Deputados, onde Arthur Lira (PP-PE) está criando as dificuldades para vender as facilidades. Antes a resistência se desse pelo teor da proposta, que exige um cheque acima do razoável por um período também acima do razoável; no entanto, os motivos que empacam a tramitação são bem mais rasteiros, como a luta por cargos no futuro governo Lula e o destino – agora definido – do orçamento secreto. Percebendo que a PEC corria risco, a Rede Sustentabilidade fez o que sabe fazer de melhor: no fim da semana passada, pediu ao Supremo que simplesmente retirasse o Auxílio Brasil (ou Bolsa Família, como voltará a ser chamado) do teto de gastos, o que o Gilmar Mendes atendeu, dando a Lula um enorme presente de Natal antecipado.

O Judiciário volta a tomar para si as competências de outros poderes e o faz de forma bastante grotesca, ignorando preceitos básicos da economia em nome da necessidade (real, não o negamos) de garantir renda aos brasileiros mais vulneráveis

Agora, o dinheiro para o Bolsa Família pode brotar por meio de medida provisória – uma solução que o petismo chegou a considerar, mas que hesitava em colocar em prática por não ter segurança jurídica sobre essa possibilidade –, mesmo que a PEC fura-teto acabe naufragando, embora o futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, prometam insistir na aprovação do texto. E, para permitir que Lula pague o Bolsa Família de R$ 600, Gilmar Mendes absolutizou o artigo 6.º da Constituição, segundo o qual “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”, e cujo parágrafo único determina que “todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária”.

O detalhe está no fato de que a “legislação fiscal e orçamentária” agora já não precisa mais ser observada; basta a vontade de um ministro do Supremo para que ela se torne praticamente nula. O teto de gastos pode até não ser “um fim em si mesmo”, como argumentou Gilmar Mendes, mas é não apenas lei: é norma constitucional, cuja finalidade é trazer racionalidade ao gasto público, criando o clima de confiança que incentiva investimentos que trazem emprego e renda ao brasileiro. Se quisesse levar a sério a “legislação fiscal e orçamentária”, Mendes teria ordenado que o Congresso encontrasse meios de bancar o benefício dentro do atual arcabouço fiscal, cortando outros gastos – e mesmo assim ele já estaria extrapolando suas funções, pois não cabe ao Judiciário elaborar o Orçamento da União. No entanto, ao simplesmente tirar o Bolsa Família do teto, o ministro demonstrou que a legislação fiscal de nada vale para ele.

Com isso, fica aberta uma caixa de Pandora do gasto público. E se o governo concluir que R$ 600 de Bolsa Família não bastam para o “mínimo existencial da população em situação de vulnerabilidade social”, e que é preciso pagar mais? Ou, então, por que parar no Bolsa Família, se há outros benefícios que se encaixam no caput do artigo 6.º? A própria Rede já anunciou que entrará com embargos de declaração para saber se a carta branca de Gilmar Mendes se aplicará apenas ao Bolsa Família, ou se pode ser ampliada a outros programas sociais. É por isso que, embora na ponta do lápis a liminar possa até resultar em um aumento menor no gasto em 2023 – além do dinheiro já previsto, seriam necessários cerca de R$ 80 bilhões para viabilizar o Bolsa Família de R$ 600, enquanto a PEC fura-teto liberaria cerca de R$ 150 bilhões –, o real perigo está no precedente que ela abre.

O Judiciário, ao novamente agir como o “tapetão” onde grupos políticos sem voto parlamentar buscam fazer valer suas vontades, volta a tomar para si as competências de outros poderes e o faz de forma bastante grotesca, ignorando preceitos básicos da economia em nome da necessidade (real, não o negamos) de garantir renda aos brasileiros mais vulneráveis. A liminar de Gilmar Mendes, se confirmada pelo plenário, abre caminho para uma gastança ilimitada, desde que com “finalidade social”, sem respeito algum pelas normas fiscais, com todos os resultados amplamente conhecidos de qualquer brasileiro que tenha memória da recessão recente e saiba ligar alguns pontos.

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