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| Foto: Nelson Almeida/AFP

Um plano petista meticulosamente calculado para tirar o ex-presidente Lula da prisão em Curitiba quase jogou o Brasil no caos neste fim de semana. Às 19 horas de sexta-feira, enquanto o país ainda amargava a derrota da seleção para a Bélgica, na Copa do Mundo de futebol, o desembargador Rogério Favreto assumia o plantão do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região. Meia hora depois, os deputados petistas Wadih Damous, Paulo Pimenta e Paulo Teixeira impetravam pedido de habeas corpus em favor de Lula, a ser analisado por Favreto.

Esse seria apenas mais um dos inúmeros recursos já apresentados até agora, e que inevitavelmente acabariam negados, não fosse por um detalhe: o histórico de Favreto, filiado ao PT por 19 anos e que havia trabalhado no governo Lula, em quatro ministérios diferentes, antes de ser nomeado para o TRF-4 em 2010, ano em que Favreto se desfiliou. O desembargador havia saído do PT, mas o PT não saíra dele: em vez de se declarar impedido, Favreto concedeu o habeas corpus na manhã de domingo, alegando um “fato novo”: a pré-candidatura de Lula à Presidência da República. Pela decisão, Lula deveria ser solto imediatamente.

Sergio Moro e João Pedro Gebran Neto tiveram de tomar decisões difíceis para manter a legalidade

Uma decisão claramente ilegal, a começar pelo fato de que, havendo uma decisão de colegiado (no caso, a 8.ª Turma do TRF-4) pela prisão de Lula, o recurso deveria ter sido apresentado a um tribunal superior, e não ao próprio TRF-4, onde o processo já estava encerrado após a análise dos embargos de declaração. Além disso, Favreto desvirtuou o sentido do plantão judiciário, desrespeitando resolução de 2009 do Conselho Nacional de Justiça, segundo a qual “o plantão judiciário não se destina à reiteração de pedido já apreciado no órgão judicial de origem ou em plantão anterior, nem à sua reconsideração ou reexame” – e, ainda que se possa argumentar que o HC de Damous, Pimenta e Teixeira fosse uma peça nova, a questão da liberdade de Lula já tinha sido analisada não apenas pelo TRF-4, mas também pelo STJ e pelo STF. Por fim, o próprio “fato novo” alegado por Favreto não tinha nada de novo, já que Lula é o pré-candidato do partido desde sempre, e também não tinha relação nenhuma com o caso do tríplex pelo qual o ex-presidente foi condenado. Se os argumentos do desembargador fossem válidos, teríamos uma nova categoria de inimputáveis no país: os pré-candidatos – com a agravante de que essa “categoria” é completamente informal, sem respaldo algum na legislação eleitoral.

Diante de tal agressão às decisões de três cortes, o juiz federal Sergio Moro, que estava em férias, mas foi citado na decisão de Favreto como “autoridade coatora”, emitiu despacho afirmando que o desembargador não tinha competência para mandar soltar Lula e que a Polícia Federal deveria aguardar futuros esclarecimentos vindos do relator da Lava Jato no tribunal, João Pedro Gebran Neto. Moro afirmou, no texto, que agia assim por orientação do próprio presidente do TRF-4, Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – um detalhe bastante relevante para avaliar a maneira como o juiz federal procedeu ao longo de todo o imbróglio.

Favreto, não satisfeito, reafirmou a ordem de soltura, na tarde de domingo, para ser desautorizado logo depois por Gebran – que, ao contrário de Moro, não estava em férias –, cuja ordem foi a de manter Lula preso. A essa altura, também o Ministério Público Federal já tinha entrado no caso, com pedidos de reconsideração, mas Favreto respondeu à decisão de Gebran com nova ordem para libertar Lula. Já na noite de domingo, Flores Lenz deu a palavra final sobre o assunto: o processo deveria ser remetido ao relator e o ex-presidente deveria continuar exatamente onde estava.

Se não há dúvidas quanto à atuação de Favreto, resta analisar o modus operandi de Moro e Gebran, chamados a tomar decisões bastante difíceis não tanto por sua natureza, mas por seu timing. O petismo esperneou porque o juiz federal teria agido apesar de estar em férias, mas Moro pode invocar, em seu favor, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, já que, em 2008, a Primeira Turma da corte decidiu pela validade de um despacho emitido por um magistrado em férias (coincidentemente, tratava-se de uma ordem de prisão vinda de Moro). Quanto a Gebran, há margem menor para questionamentos, sendo ele o relator da Lava Jato no TRF-4 e tendo sido acionado pelo despacho de Moro. Não há dúvidas de que o petismo se aproveitaria das ações de ambos (além de Flores Lenz, citado pela presidente do partido, Gleisi Hoffmann) para reforçar a narrativa de um complô judicial contra Lula, mas a essa altura apenas os petistas empedernidos acreditam nela; um observador imparcial provavelmente terá visto mais absurdos nas ações de Favreto, Damous, Pimenta e Teixeira que nas de Moro, Gebran e Flores Lenz.

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E é preciso perguntar: qual seria a alternativa? Deixar que uma decisão ilegal fosse cumprida, colocando Lula na rua para que a Justiça voltasse a ordenar sua prisão na manhã desta segunda-feira, com o risco de uma nova versão do mesmo circo montado pelo PT em abril, quando Lula se entrincheirou em São Bernardo do Campo? Não faria sentido submeter o país a outro impasse como aquele. Moro e Gebran tiveram de escolher entre uma resposta imediata, que certamente geraria – e está gerando – contestações, ou aguardar e correr o risco de deixar prosperar uma ilegalidade com consequências políticas e sociais imprevisíveis. A primeira opção é compreensível, diante da convicção profunda dos magistrados de que a decisão de Favreto era ilegítima. Se eventualmente ficar demonstrado que se tratou da escolha errada, estamos diante de algo que será corrigido com o tempo, com regras mais claras sobre como proceder diante de situações semelhantes; o que não se pode negar-lhes é a presunção da boa fé que os levou a agir como agiram diante da ilegalidade.

E, falando em legalidade, também temos de questionar se o quarteto formado pelo desembargador plantonista e pelos três deputados petistas ignorava os aspectos envolvidos no processo: eles sabiam que o plantão do TRF-4 não tinha competência para reverter uma decisão da 8.ª Turma da mesma corte, respaldada por dois tribunais superiores? Sabiam que a alegação era inconsistente? Sendo quem são – especialmente Favreto, um desembargador com oito anos de atuação no TRF-4, e Damous, um ex-presidente da OAB fluminense –, difícil acreditar que não tivessem a consciência de que estavam rasgando a lei para livrar Lula.

Daí a conclusão a que o episódio nos leva: ele só reforça a percepção, alimentada durante os quase 14 anos de petismo no poder, de que para o PT as instituições republicanas e democráticas devem servir ao partido, e não à sociedade. Só isso explica a trama montada para tirar Lula da cadeia com a ajuda de um plantonista que, acreditando poder encarnar toda a Justiça, se viu no direito de afrontar decisões judiciais de três cortes e uma resolução do CNJ, nem que para isso fosse preciso jogar o Brasil na instabilidade. E quem não teve escrúpulos para fazer isso uma vez não os terá para repetir a jogada até que funcione. O país não pode baixar a guarda.

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