A marca da diplomacia brasileira no primeiro ano deste terceiro governo Lula foi o recurso a uma equivalência moral profundamente abjeta, porque falsa. O presidente petista e seus diplomatas, a começar pelo chanceler de facto, Celso Amorim, trataram de igualar em responsabilidade ambos os lados em dois conflitos de repercussão global – a guerra na Ucrânia e a crise no Oriente Médio após a selvageria terrorista do Hamas contra Israel – e uma disputa regional, em que a Venezuela manifestou sua intenção de anexar o território de Essequibo, pertencente à Guiana. Com isso, Lula fazia sua escolha por um dos lados, já que em todos os casos há agressores e vítimas claramente definidos, de forma que é impossível igualá-los moralmente, mas ao menos havia a tentativa de manter uma aparência de neutralidade, ainda que isso só enganasse os mais incautos ou os que desejavam ser ludibriados.
O ano de 2024 começou mostrando que Lula podia afundar ainda mais, fazendo de forma explícita a escolha pelo lado errado. Na última quarta-feira, o Itamaraty afirmou que o Brasil apoiaria a denúncia oferecida pela África do Sul à Corte Internacional de Justiça (CIJ) em dezembro do ano passado, e que pede a condenação de Israel pelo crime de genocídio. Duas audiências foram realizadas na quinta e na sexta-feira, na cidade holandesa de Haia – na primeira, falaram os representantes sul-africanos, e na segunda foi apresentada a defesa israelense. Não há data certa para a corte emitir uma decisão ou determinar algum tipo de medida cautelar.
O endosso oficial de Lula à acusação sul-africana vai além do uso impróprio do termo “genocídio”, característico da esquerda; é uma postura que diminui profundamente o Brasil diante da comunidade internacional
A esquerda brasileira em geral e o PT em particular já adotaram há tempos a banalização do termo “genocídio”, aplicando-o até a questões internas de segurança pública e, mais recentemente, à condução do combate à pandemia de Covid-19 pelo governo de Jair Bolsonaro. Lula já usou a expressão para se referir à reação de Israel, que invadiu a Faixa de Gaza para tentar desarticular o Hamas e impedir novos ataques como o de 7 de outubro do ano passado. Mas o endosso oficial de Lula à acusação sul-africana vai além do uso impróprio de um termo; é uma postura que diminui profundamente o Brasil diante da comunidade internacional.
O genocídio, como definido no direito internacional, é um conjunto de ações bastante específico, com o objetivo deliberado de erradicar toda uma população detentora de certas características, por exemplo étnicas, raciais ou religiosas. Ironicamente, foi o genocídio nazista perpetrado contra os judeus no Holocausto que forneceu as bases teóricas para esta definição, embora este não tivesse sido o primeiro genocídio da história: só no primeiro terço do século 20 houve, também, o cometido pelo Império Otomano contra os armênios, ou ainda o Holodomor stalinista contra os ucranianos. Mais recentemente, houve o genocídio no Timor Leste, cometido pelo governo indonésio na década de 70, e o extermínio de tutsis realizado por hutus em Ruanda, em 1994.
No entanto, não há como aplicar essa categoria à invasão de Gaza por Israel. Seu objetivo não é exterminar os palestinos, e sim desmantelar o Hamas – este, sim, o verdadeiro genocida, já que não esconde seu objetivo de eliminar os judeus, em linha com seu grande financiador, o regime dos aiatolás no Irã. Pode-se e deve-se discutir se Israel tem feito todo o possível para evitar mortes de civis palestinos inocentes, e se foram cometidos crimes de guerra na incursão em andamento, mas a acusação sul-africana é claramente infundada, um truque político-ideológico que praticamente conta apenas com o endosso de países islâmicos, ditaduras e governos de esquerda mundo afora. Com sua decisão, Lula colocou-se ao lado, por exemplo, de Arábia Saudita, Venezuela e Nicarágua, enquanto opõe-se a democracias como a norte-americana e a alemã, que se declararam oficialmente contra a denúncia na CIJ.
E, enquanto enxerga genocídios onde não existem, Lula fecha os olhos a práticas genocidas cometidas por regimes e grupos com os quais simpatiza – não apenas o Irã e o Hamas. A invasão conduzida por Vladimir Putin na Ucrânia inclui práticas como a erradicação da cultura ucraniana nas regiões invadidas e, pior, a deportação forçada de crianças ucranianas. Na China, a ditadura comunista há tempos tenta suprimir a minoria muçulmana dos uigures na província de Xinjiang, promovendo limpeza étnica ao patrocinar a migração de chineses de etnia han e realizar esterilizações e abortos forçados entre os uigures, que costumam ser encarcerados em campos de reeducação e forçados a abandonar sua fé islâmica. A esse respeito, não se ouviu uma única palavra do petista sobre seus companheiros no bloco dos Brics.
Todo o mundo democrático capaz de ligar os pontos já sabia onde Lula se posicionava no conflito entre Israel e Hamas com sua falsa equivalência moral, mas, como afirmamos no início, ao menos o Brasil ainda mantinha uma ar de neutralidade com que o país tentava se qualificar como um possível mediador internacional de relevância. Agora, até mesmo as aparências se perderam. O Brasil alinha-se oficialmente com o que há de pior no mundo, com os terroristas e com os ditadores, opondo-se a um país que tem o direito de se defender das ameaças contra sua existência e que luta contra um agressor que não hesita em fazer os próprios palestinos de escudos humanos, expondo-os deliberadamente ao fogo israelense para lucrar midiaticamente com os corpos de civis inocentes. Em vez de defender a devida identificação e investigação de eventuais crimes de guerra, o Brasil opta por endossar uma acusação genérica que faz troça da verdadeira natureza dos genocídios e mostra como, para Lula, as avaliações de todos os atos dependem não daquilo que é feito, mas de quem faz, se aliado ou adversário.
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