
Assim como o proverbial relógio quebrado, que dá a hora certa duas vezes ao dia, também o presidente Lula, apesar de ser quem é, defender o que defende e fazer o que faz, ocasionalmente acerta. É o que aconteceu na semana passada, quando o petista vetou na íntegra o projeto de lei complementar que aumentava o número de deputados a partir da próxima eleição, de 513 para 531. O texto tinha sido aprovado pela Câmara em maio, passou pelo Senado com a maioria mínima em junho, com algumas alterações, referendadas no mesmo dia em segunda votação na Câmara.
No veto, o presidente alegou “contrariedade ao interesse público” e “inconstitucionalidade”, acrescentando que, “ao prever a ampliação do número de parlamentares, a medida acarreta aumento de despesas obrigatórias, sem a completa estimativa de impacto orçamentário, de previsão de fonte orçamentária e de medidas de compensação, onerando não apenas a União, mas também entes federativos”. Esta última frase é uma referência às Assembleias Legislativas dos estados que ganhariam mais deputados federais, pois o artigo 27 Constituição atrela o número de deputados estaduais de uma unidade da Federação à representação que ela tenha na Câmara Federal. Ou seja, o inchaço não se refletiria apenas em Brasília, mas também nas capitais dos nove estados cuja bancada federal aumentaria, pois cada deputado federal a mais significaria de um a três novos deputados estaduais, com todo um entorno de assessores e privilégios como auxílios para as mais diversas finalidades.
Ainda que Lula tenha vetado o aumento no número de deputados por irritação com o Legislativo, e por hipócrita que seja barrar uma medida alegando que ela aumenta despesas, o veto foi uma decisão acertada
Ninguém haverá de pensar que o presidente subitamente teve um surto de responsabilidade fiscal, e por isso vetou o projeto. Lula continua a ser o gastador de sempre, e o principal responsável por colocar o Brasil no caminho do caos fiscal. No entanto, qualquer deputado favorável ao projeto de lei aprovado no Congresso e vetado por Lula perde parte ou toda a sua autoridade moral para criticar um presidente perdulário quando apoia uma medida que cria mais despesas – ainda que em escala menor que as barbeiragens fiscais de Lula e Fernando Haddad –, ainda mais em benefício próprio. Até porque havia uma alternativa melhor na mesa.
A origem do PLP 177/2023 era uma decisão do STF que ordenava a redistribuição de cadeiras na Câmara devido a mudanças populacionais ocorridas nas últimas décadas. A Constituição exige ajustes periódicos nas bancadas estaduais para que sejam proporcionais à população de cada estado, e uma lei de 1993 exige que sejam usados os dados mais recentes do IBGE. Mas, depois de 1994, isso nunca foi feito, apesar de terem ocorrido três recenseamentos desde então. O correto, portanto, seria manter os 513 deputados, rearranjando as cadeiras de cada estado. No entanto, isso levaria alguns estados a perderem deputados; foi para que isso não ocorresse que surgiu a ideia de inchar a Câmara com mais 18 parlamentares.
Ressalte-se que mesmo uma redistribuição que mantivesse o total de 513 deputados ainda ficaria muito aquém da solução ideal, na qual as bancadas estaduais corresponderiam exatamente à proporção das populações dos estados no total de brasileiros. Quando São Paulo tem 22% da população do Brasil, mas 13,6% das cadeiras da Câmara, enquanto Roraima tem 1,56% de todos os deputados federais, apesar de ter 0,34% do total de brasileiros, a distorção salta aos olhos, mostrando que no Brasil o princípio “um homem, um voto” não é realmente aplicado neste caso. Mas, para isso, seria preciso abolir a regra constitucional que impõe um mínimo de 8 e um máximo de 70 deputados federais por unidade da Federação.
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Também não há como deixar fora da equação as rusgas recentes entre Executivo e Legislativo, que tiveram seu auge na disputa sobre a elevação do IOF, com o acertado decreto do Congresso que derrubou o aumento, e a bem-sucedida judicialização do tema pelo governo, que conseguiu uma decisão monocrática de Alexandre de Moraes restaurando as alíquotas mais elevadas. Por essa leitura, Lula quis retaliar os parlamentares pelas derrotas que vem sofrendo, e talvez em outras circunstâncias o projeto de lei que incha a Câmara tivesse sido sancionado normalmente. É uma hipótese que não se pode descartar por completo.
Mas, ainda que Lula tenha vetado o projeto de lei por pura irritação com o Legislativo, e por hipócrita que seja barrar uma medida alegando que ela aumenta despesas enquanto o Executivo segue em sua espiral de gastança sem fim, é indiscutível que o veto foi uma decisão acertada, e pouco importa que o desfecho mais provável seja sua derrubada assim que o Congresso voltar do seu “recesso branco”. A irresponsabilidade é toda dos parlamentares que apoiaram esta gambiarra que nem cumpre corretamente a decisão de 2023 do STF, nem avança no sentido de tornar as bancadas estaduais um reflexo mais fiel da distribuição da população brasileira.



