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Um dos mais contundentes discursos sobre a violência já produzidos no Brasil se chama Quase dois irmãos – filme da jornalista Lúcia Murat, lançado em 2004. Não se trata aqui de replicar o enredo, uma alegoria sobre o nascimento do crime organizado no país. Mas de lembrar uma cena "matadora": em uma penitenciária, jovens presos políticos de um lado e marginais arrebanhados pelos "comandos" do outro, erguem um muro no meio da cadeia. É o melhor que podem fazer: já não falam a mesma língua nem se sentem habitantes do mesmo país.

A sequência criada por Murat nos faz sentir o barulho surdo das sepulturas. Se não existe uma nação na qual acreditar, não há mais por que falar. Tijolo sobre tijolo se ocupam disso. Tal como no filme, é mais ou menos o que acontece nesses tempos de violência bruta em que nos metemos. Erguem-se os muros de escolas, de residências, de edifícios e até se cercam as praças para que nos protejamos dos outros, já que deles nada se pode esperar. Um the end infeliz.

A sociedade da descrença é pragmática. Julga-se objetiva, racional e, como se diz nos psicologismos fast food, bem resolvida. Mas é fatalmente submissa à violência. Em paralelo a ela, contudo, uma outra forma de vida se desenvolve. Trata-se da comunidade dos crentes. Ela se nutre de pequenas redes colaborativas, não raro informais e despretensiosas. Pode surgir no encalço de associações de bairro, mas também em clube de mães ou de iniciativas culturais.

A rede dos crentes se dá bem com microcosmos, onde desenvolve laboratórios de pequenas sociedades possíveis, justas, pacíficas e solidárias. É persistente, garantindo que a voz de cada um seja protegida do rolo compressor da mesmice, como se ocupava em dizer Susan Sontag. Para a norte-americana, resistir e garantir que as pessoas mostrem sua dicção.

Não se tome por performance vocal. A seu modo, esses grupos "fora dos muros" fazem ciência – ciência de convivência, do aprendizado, da não violência. Pode-se dizer, sem medo, que aqueles que os observam podem beber nesses conhecimentos e oferecê-los à sociedade, de forma sistematizada, como se diz na academia, constituindo uma espécie de "ciência da paz".

Há exemplos. O coronel Roberson Bondaruk, da Polícia Militar do Paraná, mostrou com A prevenção do crime através do desenho urbano e Design contra o crime, dois de seus livros mais festejados, que o combate à violência passa, ora, por muros baixos – que permitem que as casas sejam cuidadas –, relações de vizinhança, designs adequados e, como não, cidades bonitas, que convidem a ficar no sol e no sereno.

Além de funcionar como "dicas" de sobrevivência na selva urbana, esses saberes têm um efeito colateral. Nascidos da observação da chamada polícia comunitária, da qual se ocupa Bondaruk, mas também da experiência de comunidades, tendem a mexer nos estilos de vida. Em vez de ensinar a alugar cercas elétricas, ensinam que as trocas no quarteirão garantem proteção, prazer e sentido do "bem viver".

Reduzido ao slogan comercial "qualidade de vida", o bem viver parece pouco. Mas pensado como categoria filosófica, à moda do que cravou Gaston Bachelard, o bem viver é acima de tudo o bem falar. Os homens e mulheres que vivem juntos recobram o direito à palavra. É a derrubada do muro da cadeia. Simples como isso.

Ficção? É o que dizem os céticos quando se fala na ciência da violência. Depende – as formas como a violência se esvai soam mesmo ficcionais. Veja-se o caso da Colômbia: ciclovias, bibliotecas, união das polícias... Funciona. E se deve dizer que a realidade teria um peso insuportável sem essas pequenas fantasias. Restaria a tragédia estampada no noticiário policial.

Deve-se considerar também que a ideologia do medo rejeita as possibilidades da paz. O medo, diz o pesquisador Adauto Novaes – se impõe para conter a desobediência civil. Alimentá-lo é tarefa para tiranos. Esse assunto é espinhoso, claro. A criminalidade nos soa de tal forma brutal que a simples menção a que "talvez não seja tanto", ou que "os olhos estão míopes", faz com que as pedras sejam jogadas. Considerá-la como produto, logo manipulável, contudo, é, para quem o desejar, uma fantasia boa. Ajuda a entender que a violência pode sucumbir a uma boa política. Porque a má, já conhecemos, é a que vive do silêncio e do pânico.

Do contrário, vamos continuar a nos ver como inimigos, cada vez mais dependentes de tecnologias de proteção, garantias apenas das posses e dos confortos. Tudo se converte em couraça – do celular a qualquer nova traquitana eletrônica que possa informar com quem e como estamos. A vitória da tecnocracia é a derrota da humanidade – e são muitos a nos alertar sobre isso. O mestre no assunto Jean Delumeau [autor de História do medo no Ocidente], por exemplo.

Para Delumeau, a violência abalou a afetividade, as paixões, gerando uma "economia psíquica", na qual somos dirigidos por forças invisíveis. Da "arte pela arte" do século 20 saltamos ao "medo pelo medo". É a violência como sistema. Sem cara. Ou lidamos com isso ou seremos enquadrados e avaliados, à maneira do que faz um setor de recursos humanos, a nos premiar pela competência com que tememos mais e melhor. É escravidão. As pequenas receitas antiviolência – caseiras ou científicas – estão aí para nos ensinar a dizer "não". Como diz Bondaruk – uma cidade mais bonita já é um bom começo.

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