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O sistema de censura instalado no Brasil ao longo dos últimos anos já ganhou destaque internacional. O debate voltou à ordem do dia graças a alguns dos argumentos usados pelos Estados Unidos para aplicar sanções comerciais ao Brasil, e a processos movidos nos EUA, inclusive por empresas ligadas ao presidente Donald Trump, contra o ministro Alexandre de Moraes, recentemente descrito por uma autoridade norte-americana como “o coração pulsante do complexo de perseguição e censura contra Jair Bolsonaro, o qual, por sua vez, restringiu a liberdade de expressão nos Estados Unidos”.
Se de fato existe uma inquietação da diplomacia norte-americana com a possibilidade de o Brasil ampliar um modelo autoritário e intervencionista em relação às empresas dos EUA, especialmente com atuação no ambiente digital, a atenção dos Estados Unidos não deveria se dirigir apenas ao Supremo Tribunal Federal, mas também ao Congresso Nacional; o motivo é o inusitado – e dotado de incompreensível sentido de urgência – projeto de reforma do Código Civil, capitaneado pelo ex-presidente do Senado Rodrigo Pacheco.
Como noticiado por esta Gazeta do Povo em diversas oportunidades, o projeto do Código Civil de Pacheco é uma das mais preocupantes iniciativas legislativas em tramitação no país. Todos os livros do projeto encontram-se permeados por regras restritivas à liberdade econômica; mas um deles, o do chamado “Direito Digital”, traz ameaças ainda maiores. Se adicionado ao Código Civil, ele instituirá normas que impõem restrições inéditas à atuação das big techs e, em sentido mais amplo, às empresas norte-americanas operantes no Brasil, restrições essas sem paralelo no restante do mundo democrático.
O projeto do Novo Código Civil de Pacheco vai muito além do estrago à liberdade de expressão feito pelo STF no julgamento do Marco Civil da Internet
A decisão recente do Supremo Tribunal Federal, que julgou parcialmente inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet, já representou um retrocesso grave à liberdade de expressão e à liberdade de empresa, mas o projeto do Novo Código Civil de Pacheco vai além, ao criar um conjunto de novos direitos e deveres jurídicos, vinculados a uma responsabilização excessiva, obscuro e potencialmente paralisante às empresas.
A título de exemplo, prevê-se que as grandes plataformas digitais se submetam obrigatoriamente a auditorias anuais preventivas de riscos, às suas próprias expensas, com o dever de implementar integralmente todas as recomendações resultantes, ainda que essas contrariem o modelo de negócio da empresa auditada. Trata-se praticamente da inserção de um órgão deliberativo nas big techs, que, além de ouvir seus acionistas e administradores, terão de agir conforme as auditorias anuais determinarem.
Mas quais “riscos” seriam estes? O mesmo projeto do “Código Pacheco” amplia-os a não mais poder, introduzindo a possibilidade de responsabilização judicial por conceitos vagos e sem prévio dimensionamento pela tradição jurídica brasileira. Cite-se, apenas como exemplo, a criação de um direito à “privacidade mental”, aos “neurodireitos” e à “transparência algorítmica”.
Obviamente, para cada um desses novos direitos criados pelo “Código Pacheco”, existe um novo “dever” que será imposto às empresas. A depender da interpretação judicial, a própria gestão estratégica das empresas poderá se ver subordinada ao entendimento que tribunais brasileiros venham a consolidar sobre esses novos “direitos digitais”, por exemplo, tutelando a “privacidade mental” dos pobres e indefesos brasileiros, incapazes de escolher o que melhor lhes aprouver para as suas mentes...
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O risco jurídico é potencializado por dispositivos como o artigo 944-B, que permite indenizações por danos futuros e indiretos; e o artigo 927-B, que autoriza a responsabilização civil de atividades lícitas, desde que estas apresentem um “risco especial”. Ora, qualquer atividade pode apresentar um “risco especial” se um juiz quiser entender deste modo!
O resultado prático é um ambiente normativo instável e hostil à liberdade de empresa que, a todo momento, terá de se adequar ao que quer que se compreenda dessas expressões vagas, imprecisas e especialmente permissivas à criação ao gosto do que o Poder Judiciário entender melhor.
A proposta ainda resgata, sob novas roupagens, institutos controversos como o chamado “direito ao esquecimento”; e verdadeiramente extravagantes, como o “direito à desindexação”, permitindo a supressão ou ocultação de conteúdo na internet por via judicial. Isso, na prática, pode implicar censura de conteúdos lícitos e verídicos, violando frontalmente a liberdade de expressão.
Com o projeto do Novo Código Civil de Pacheco, limpam-se biografias. Criam-se biografias. Tudo sem qualquer respeito à verdade e à história
Qualquer fato histórico, caso aprovado o projeto do Novo Código Civil, poderá ser reescrito com o instrumento do “direito ao esquecimento” aliado ao direito à indenização. Um hipotético político condenado por corrupção, por exemplo, poderia impor às big techs que retirem as notícias passadas acerca dessa condenação verdadeira, e que aquilo que eventualmente restasse na rede fosse desindexado, para que nem os melhores mecanismos de busca pudessem achá-lo. Assim, com o projeto do Novo Código Civil de Pacheco, limpam-se biografias. Criam-se biografias. Tudo sem qualquer respeito à verdade e à história, que passam a ser contingências de quem pode decidir esquecer ou desindexar.
A Gazeta do Povo lembrou repetidas vezes a convergência ideológica entre Pacheco e Moraes, ministro que esteve presente nos momentos mais importantes dessa pretendida reforma legislativa e que, recentemente, defendeu uma tese de professor titular no bojo da qual defende que a democracia se preserva à custa da liberdade de empresa e da liberdade de expressão. Na edição mais recente do chamado “Gilmarpalooza”, Pacheco ainda disse que seu sucessor no comando do Senado, Davi Alcolumbre, deve anunciar em agosto – coincidentemente (ou não), exatamente quando as novas tarifas norte-americanas devem entrar em vigor – o estabelecimento de uma comissão para dar andamento ao projeto. O governo do PT, por sua vez, é um ambiente mais saudável para que essas ideias convergentes cresçam e apareçam, talvez para que o Direito Civil espelhe a desejada nova sociedade brasileira imaginada por Lula, Pacheco e Alexandre de Moraes.
Se Pacheco, idealizador e principal patrocinador do projeto de Novo Código Civil, está ou não entre os “aliados” de Moraes sancionados pelo governo norte-americano, e se a eventual revogação de visto tem ou não relação com as ameaças às big techs previstas no projeto, são algo ainda a se confirmar. Mas é certo que o maior projeto de lei gestado sob sua liderança, ainda em tramitação, representa um ataque frontal aos pilares da democracia liberal: liberdade de expressão, segurança jurídica e liberdade de empresa.



