A meia-noite de sexta-feira, no horário de Bruxelas – 23 horas em Londres, 20 horas em Brasília –, é o marco de um momento inédito: pela primeira vez um país deixa a União Europeia. Depois da aprovação do acordo do Brexit no Parlamento britânico e da sanção real, faltava apenas o aval dos eurodeputados. Eles se reuniram na quarta-feira, dia 29, e por 621 votos a 49, com 13 abstenções, os termos da saída do Reino Unido foram aceitos. Os eurodeputados britânicos fizeram seus últimos discursos, e no fim os parlamentares se deram as mãos e cantaram uma tradicional canção escocesa de despedida – uma ironia que talvez tenha passado despercebida, já que os escoceses foram majoritariamente contrários ao Brexit e, em 2014, só votaram por permanecer no Reino Unido em vez de escolher a independência porque foram convencidos de que o país continuaria no bloco europeu.
As comemorações dos leavers, britânicos defensores da saída, contrastam com o low profile governamental – o premiê Boris Johnson preferiu dar uma pequena festa para seus ministros e assessores, descartando grandes celebrações oficiais para demonstrar respeito pelos que gostariam de continuar na UE. Até porque a ruptura está apenas começando, pois todo o processo de saída deverá levar quase um ano. De imediato, pouco muda, por exemplo, para os cidadãos europeus que moram e trabalham no Reino Unido, bem como para os britânicos que vivem e trabalham na UE – as novas regras para essas pessoas serão definidas entre os negociadores de ambos os lados durante este ano, bem como todos os outros aspectos, especialmente o futuro das relações comerciais entre o Reino Unido e a União Europeia. Não será um divórcio simples, mas seria muito mais complicado se os britânicos tivessem, por exemplo, adotado o euro ou integrado o Espaço Schengen, que aboliu os controles de fronteira nos países participantes.
A saída do Reino Unido força não apenas a União Europeia, mas todos os órgãos multilaterais a repensar seus modelos: cooperação ou hipercentralização?
A concretização do Brexit encerra uma novela de anos, e só foi possível porque o eleitorado britânico usou a eleição parlamentar do fim de 2019 para dar um recado à classe política que insistia em contornar a vontade popular. O conservador David Cameron venceu o pleito de 2015 com a promessa de convocar o referendo sobre a permanência do Reino Unido na UE. A promessa foi cumprida no ano seguinte, com a vitória do Brexit e a queda de Cameron, que havia feito campanha pelo “remain”. Sua sucessora, Theresa May, até iniciou o processo de saída, mas seus planos foram todos recusados pelo Parlamento e, no meio de 2019, ela renunciou, abrindo caminho para Boris Johnson, um Brexiteer convicto que teve de lidar com a hesitação de muitos colegas de partido, que lhe impuseram uma série de derrotas iniciais em seu intento de concretizar a ruptura. Quando Johnson finalmente conseguiu a convocação de eleições extraordinárias, ele e os conservadores alinhados com o Brexit tiveram uma vitória avassaladora, que lhes permitiu finalizar o acordo de saída.
A saída do Reino Unido força não apenas a União Europeia, mas todos os órgãos multilaterais a repensar seus modelos. A UE é o exemplo mais profundo de integração entre nações e, apesar de ter nascido sob o signo da subsidiariedade, com a proposta de respeitar as particularidades nacionais, tornou-se um órgão hipercentralizador. A transferência de poder dos parlamentos nacionais para Bruxelas e a maneira como esse poder foi usado, muitas vezes atropelando soberanias e impondo padronizações desnecessárias e desproporcionais, gerou o ressentimento que levou ao Brexit, mas que não termina com ele: basta ver como o euroceticismo ganha terreno também em outros países-membros, como Itália, Hungria e Polônia.
Permanecer na União Europeia e usar a influência britânica para trazê-lo de volta à direção certa teria sido opção mais benéfica no longo prazo (embora mais difícil) que simplesmente abandonar um projeto de integração. Se isso está ocorrendo, é preciso se perguntar até que ponto tais projetos – não apenas o europeu – estão sendo usados para ir além do estímulo à cooperação, à segurança mútua e ao comércio livre, em uma extrapolação que suprime autonomias nacionais, isso quando não usa a burocracia supranacional para impor valores estranhos à sociedade, como o aborto e a engenharia social da ideologia de gênero. “O que queremos da Europa?”, questionou o eurocético Nigel Farage em seu discurso final no Parlamento Europeu. Os que ficam terão de responder a essa pergunta nada simples.
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