• Carregando...

Os chamados "atentados poéticos" – misto de performance, intervenção urbana e flash­mobs que ocorrem pelo mundo – costumam revelar uma surpresa quando acontecem no Brasil. A ação é simples: um dia "D" é reservado para que as pessoas abandonem um livro pela cidade – pode ser num banco de praça –, com uma carta dentro destinada a quem achar o volume. Nela, o doador deve falar daquilo que está doando. O objetivo, claro, é deixar algo como herança para um anônimo, surpreender e encantar. Dá certo. Detalhe: a condição para a escolha da obra é só uma – tem de ser um "livro afetivo", um texto importante para quem o leu, em qualquer momento da vida. Do contrário, as pessoas usariam o momento para se livrar daquele manual escolar que odiavam, um cadáver na estante.

Não há estatísticas seguras, apenas impressões, mas nos "atentados" os brasileiros tendem a deixar livros infantojuvenis, não raro oriundos de séries de sucesso, como a "Vaga-Lume" e a "Para Gostar de Ler". Menos raro ainda é que as obras deixadas por aí sejam adaptações de clássicos da literatura. As escolhas nacionais no bookcrossing, como é chamado o evento, intrigam os estudiosos de leitura. Os "guerrilheiros" não sabem, mas passam o recado – os "livros amados" são os da adolescência, indicando mais uma vez que nosso público se distancia da experiência gratificante da leitura à medida que entra na próxima fase, daí haver menos livros "adultos" abandonados durante o "atentado".

No último mês, um dos debates mais quentes do país foi a aprovação, pelo Ministério da Cultura, de projeto da escritora Patrícia Engel Secco. Ela captou R$ 1 milhão para imprimir 600 mil exemplares com versões simplificadas de O alienista, de Machado de Assis, e A pata da gazela, de José de Alencar, via Instituto Brasil Leitor. Em resumo, palavras difíceis ou longe da experiência do público do século 21 ganharam substitutas, de modo a evitar os "ruídos", dificuldades que levam os menos escolarizados ou escolarizados em processo a abandonar um texto. Cerca de 7 mil pessoas se manifestaram em abaixo-assinado on-line contra as adaptações.

Em tese, Secco não fez nada muito diferente do que dezenas de autores – muitos do primeiro time, como Carlos Heitor Cony – que ao longo do século 20 escreveram adaptações juvenis, sem merecer a masmorra. Mas a iniciativa não foi recebida com aplausos. A inteligência literária se manifestou, mostrando-se longe de um consenso e perto do ressentimento. Um dos erros da autora pode ter sido mexer na obra de Machado. Antes o fizesse com Shakespeare, já prestado a todo e qualquer tipo de papel – o estrago seria menor. O outro equívoco foi ter concluído seu projeto num momento não muito favorável. A simplificação e a adaptação acabaram sendo recebidas como um oportunismo, para muito além das boas intenções que moveram tantos e tantos editores que lançaram no mercado obras "mastigadas", como agora se diz. O escritor e jornalista Aguinaldo Silva ataca dizendo que o projeto coloca Machado "na língua do Lula", para replicar aqui a bravata mais inofensiva. Imagine o resto.

Difícil julgar se o caso é sinal de deterioração ou se dá continuidade à lógica das adaptações, uma marca profunda do mercado editorial no chamado "país sem leitores", em que a estratégia de seduzir pela facilidade funciona como passaporte para que, quem sabe, o leitor ingressasse na fase seguinte. Dado novo é que, para surpresa geral, embora Secco diga que seu projeto é uma garantia de acesso dos populares à obra de Machado e Alencar, são os jovens da classe média que estão se atirando à leitura. As editoras descobriram o filão e dividem a garotada em várias faixas, garimpando livros adequados para cada uma delas – inclusive adaptações.

Pode-se dizer que o projeto dialoga com uma tradição, que viceja o leitor em formação, e que há uma base de conhecimento sobre como nossos leitores praticam esse esporte. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, versão 2012, mostra que metade dos brasileiros não leem, que nosso povo acha ler desinteressante. E que a leitura se dá de forma fragmentada, aos pedacinhos – método que vale para a Bíblia, para os jornais e para as fotocópias dos textos da faculdade.

Afirmar sem trégua que só vale a leitura do original não deixa de ser penalizar o leitor em gatinhas. É desconhecer o leitor real. É assunto delicado demais para ser tratado com ressentimentos. Os leitores brasileiros não são feitos à imagem e semelhança dos especialistas. São o que são. Eis o ponto de partida.

Dê sua opinião

Você concorda com o editorial? Deixe seu comentário e participe do debate.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]