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A opinião pública ficou estupefata com a revelação de que o secretário municipal de Trânsito de Curitiba, o advogado Marcelo Araújo, havia somado pelo menos 202 pontos em sua carteira de habilitação desde 2003. Isto é, ao longo de vários anos foi flagrado cometendo infrações previstas no Código de Trânsito Brasileiro que lhe custariam a suspensão por 30 dias da habilitação e a realização de um curso de reciclagem para recuperá-la.

Advogado especialista em legislação de trânsito e com a experiência acumulada em anos como membro de órgãos julgadores de infrações – a Jari e o Cetran –, fez correto uso do que lhe permitem os dispositivos legais para recorrer contra as punições. E obteve sucesso em todas as nove vezes em que foi notificado a entregar a carteira ao Detran, cada uma delas correspondente a no mínimo 20 pontos. Encontrava-se ainda pendente um recurso relativo a 22 pontos que somou no ano de 2008 quando, em janeiro deste ano, aceitou o convite para assumir o cargo de secretário de Trânsito do município.

Não se contesta aqui o exercício democrático, um dos pilares do estado de direito, da ampla defesa que empreendeu, obtendo sucessivamente êxitos em suas demandas para manter a regularidade de sua habilitação e o direito de continuar ao volante. O que deve ser observada é a configuração de uma contumaz desobediência às regras mais elementares da legislação de trânsito, o que, com certeza, o desqualifica para ocupar a chefia de um órgão que tem por missão exatamente a de zelar pela segurança e pela legalidade da conduta dos motoristas.

Há no episódio, porém, outros elementos essenciais que não podem ser desprezados. O caso do secretário do Trânsito, pela repercussão e por ser recente, deve ser visto apenas e meramente como emblemático do comportamento comum do brasileiro médio – e das autoridades que o representam – quanto ao respeito às leis, à moralidade e à ética. Mas é preciso frisar que, partindo dele exemplo tão condenável de mau motorista que consegue se safar de penalidades, abriu as portas para que outros sintam-se tentados a seguir a mesma cartilha.

Os sociólogos que melhor entendem a alma do brasileiro identificam nela alto teor de tolerância – uma deformação que, além de atávica, está claramente vinculada ao ainda precário grau de educação do povo, no sentido estrito de escolaridade. Pesquisas têm mostrado que, quanto menor o nível de escolaridade, maior a tolerância, dando-se o inverso à medida que a instrução melhora. No livro A cabeça do brasileiro, o cientista político Alberto Almeida transformou a assertiva em números estatísticos: diante da frase "se alguém é eleito para um cargo público, deve usá-lo em benefício próprio, como se fosse sua propriedade", 17% dos entrevistados disseram concordar com ela – mas entre os analfabetos e os que fizeram até a 4.ª série do ensino fundamental os porcentuais ficaram, respectivamente, em 40% e 31%.

É evidente que a estatística revela com acerto o que, na verdade, nos parece óbvio. Mas há algo mais importante que os números não contam e que se resume num dístico popular: "o exemplo vem de cima". Como mostrou a Gazeta do Povo de ontem, bons ou maus exemplos tendem mais a ser seguidos, imitados ou respeitados quando seus autores são detentores de múnus público – isto é, se parte da autoridade um mau exemplo, a tendência é de que as pessoas comuns se sintam previamente absolvidas se agirem da mesma e errada maneira. O contrário é tão verdadeiro quanto, ou seja, é do comportamento correto do homem público que se estende ao comum das pessoas a noção do que é honesto, ético, moral e sensato na vida cotidiana.

Ou seja, o processo civilizatório de um povo – que na essência significa ser mais devoto ao cumprimento das leis, ao respeito pelas normas de convívio social e ao correto exercício de seus deveres e direitos democráticos – passa necessariamente pela educação, mas também pelo exemplo de higidez daqueles que, exercendo funções de responsabilidade pública, o demonstrem cabalmente. Assim, em um cenário ideal, seriam reduzidas as possibilidades de se repetirem casos como o do secretário de Trânsito – episódio que pode até ser considerado de natureza leve quando se constata a gravidade da corrupção que grassa solta e impune nos escalões mais altos da República e contra a qual nosso povo (definido na sociologia como cordial) não coloca em prática o inconformismo necessário.

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