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 | Albari Rosa/Gazeta do Povo
| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Não há democracia verdadeira sem profundo respeito ao Estado de Direito, o que equivale a dizer que a democracia não é apenas a vontade da maioria. Se hoje isso parece um truísmo, essa compreensão é, na verdade, fruto de um longo amadurecimento político e institucional para garantir o respeito às leis, à Constituição e conferir à dignidade do poder Judiciário uma verdadeira equivalência à dos poderes Legislativo e Executivo. Essa saudável valorização do Judiciário nasceu nos Estados Unidos, no início do século XIX, se espalhou pelo Ocidente do pós-Guerra e, no Brasil, se acentuou na Constituição de 1988.

No entanto, é preciso cautela para que os juízes não abram mão da prudência e da boa interpretação das normas do ordenamento jurídico. Especialmente em um país como o Brasil, em que a Constituição é farta de normas programáticas e principiológicas, a lei abusa de termos genéricos e o Congresso muitas vezes é omisso, é fácil que juízes cedam à tentação e assumam uma postura ativista. Eventuais discordâncias ideológicas se travestem de posições jurídicas e degeneram em verdadeiro boicote às decisões políticas. Infelizmente, temos assistido a casos assim no Brasil, marcado por uma polarização que parece alcançar setores do Judiciário. Dois casos ocorridos esta semana ilustram essa tendência preocupante.

Não seria razoável um juiz libertário declarar a inconstitucionalidade de toda a CLT

Na quarta-feira (29), uma juíza federal suspendeu a propaganda do governo federal sobre a reforma da previdência, porque não enxergou nela caráter informativo; ao contrário, viu “manipulação”, “desinformação” e desqualificação do funcionalismo público por parte do governo. Afora o fato de que a propaganda não ataca diretamente o funcionalismo, ao repisar fatos óbvios como a existência de privilégios nos regimes previdenciários brasileiros, a decisão ainda entrou no mérito do que o anúncio deveria discutir – algo inadequado em se tratando de um tema tão complexo, cheio de contornos que obviamente não cabem todos em uma propaganda de televisão.

Mais grave do que isso, no entanto, é a insistência da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) em boicotar ativamente a reforma trabalhista. Nesta segunda-feira (27), a associação deu mais um passo em sua cruzada e acionou a Justiça contra a Confederação Nacional dos Transportes, que havia divulgado um formulário ensinando empresários a denunciarem juízes ao Conselho Nacional de Justiça, em reação às cartilhas da Anamatra, que pregavam o boicote da “ilegítima” reforma, aprovada em um “Estado de exceção”. Não se ignora que no Brasil existe o controle difuso de constitucionalidade e que os juízes têm o dever de julgar a constitucionalidade das leis nos casos concretos de acordo com sua consciência. O que não parece razoável é que se insista em uma leitura da Constituição que privilegie apenas princípios protetivos, em detrimento dos princípios mais liberais, que também constam da Constituição, de modo a rejeitar substancialmente as mudanças aprovadas pelo Congresso.

A Constituição brasileira abriga diversos princípios em tensão entre si – essas tensões são resolvidas pelo Congresso e pelas assembleias estaduais, na edição das leis, e resolvidas diariamente por juízes e pelo Supremo Tribunal Federal, quando faz o controle abstrato de constitucionalidade. Livre comércio, livre iniciativa, liberdade de trabalho convivem, por exemplo, com a proteção do mercado de trabalho e dos hipossuficientes. Assim como não seria razoável um juiz libertário enfatizar a leitura de princípios liberais e declarar a inconstitucionalidade de toda a CLT, não parece adequado que se faça o oposto para negar vigência à atual reforma trabalhista. Há uma margem entre os extremos – extremos estes proibidos pela Constituição – em que o Congresso deve ter liberdade para navegar e conduzir o país. Dentro dessa margem, os juízes, por mais que divirjam ideologicamente das decisões tomadas, devem respeitar a separação dos poderes.

É preciso que os setores mais exaltados do Judiciário abandonem o ativismo e exercitem a moderação na interpretação das leis, sob pena de exasperarem a polarização no Judiciário, inviabilizando a condução do país. A harmonia entre os poderes, com seus conflitos balizados pela lei, é fundamental para modernização da nação. No curto prazo, já que a reforma trabalhista polarizou os campos, faz-se o quanto antes necessário que o Supremo seja provocado a se manifestar sobre a constitucionalidade da reforma como um todo, para resolver desde logo quais dispositivos – se é que há algum – seriam inconstitucionais. Do contrário, o passo modernizador que foi dado pela reforma corre o risco de ser revertido pela insegurança jurídica advinda da sistemática negação à aplicação da lei.

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