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A expectativa de vida aumentou, há exemplos notáveis de redução dos índices de violência e a sociedade do conhecimento é uma realidade. Mas, apesar de tantos avanços, a cultura do medo imobiliza a população e ameaça o coletivo. Diante de casos como o do crime da Praia dos Amores o impulso de reclusão aumenta. É preciso reagir

O grau de violência a que foram expostos os jovens Osíris Del Corso e sua namorada – há pouco mais de uma semana, no balneário Caiobá, litoral do estado – provocou, como era de se esperar, o efeito caramujo. Reportagem publicada domingo na Gazeta do Povo dá conta de turistas amedrontados – passando pelo Morro-do-Boi, onde o crime se deu, usando dos mesmos cuidados que tomariam para atravessar um campo minado de Angola.

Moradores da região, igualmente apavorados, pagam escolta para se proteger durante o veraneio, em tese período destinado a descansar e reforçar laços sociais. O absurdo da situação faz lembrar a história daquele casal que comprou pacote de lua-de-mel para a Caxemira, a turbulenta divisa da Índia que não deve merecer nenhum capítulo da novela das oito. Não se tem notícia de início de casamento mais desastrado.

O medo é assim – feito um enlace que deu errado, quando tinha tudo para dar certo. Entre os inúmeros pesquisadores hoje devotados a pesquisar o tema, não poucos destacam esse caráter algo esquizofrênico da chamada "sociedade da violência". Depois de duas guerras mundiais e do controle à unha da ameaça nuclear, o mundo parecia enfim liberado para a felicidade. Mas cavou um nicho de tragédia em meio à prosperidade, do qual não consegue sair. Eis a questão.

Um dos expoentes dos estudos de violência, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, vê com perplexidade o atual estado das coisas. O planeta, diz, superou a Guerra Fria, em boa medida neutralizou o perigo nuclear, e encara com heroísmo as catástrofes naturais – feito tsunamis e Katrinas. Mas sucumbe diante da autodestruição, palavra mais-do-que-adequada para definir a sociedade incapaz de reagir diante da cruzada da violência – uma violência que não está numa linha de conflito específica, como a Caxemira, mas do portão para fora da casa de cada um. Vive-se um suicídio coletivo.

O próprio Bauman esboça uma explicação para essa equação de altíssimo grau. Uma zona de guerra é um espaço determinado, preciso, controlável –– inclusive pelas câmeras de tevê, como se sabe desde a Guerra do Golfo. Mas a violência urbana de nossos tempos é difusa, anônima, anacrônica, inexplicável. A ameaça pode vir dos sujeitos estereotipados – os feios, sujos e malvados – mas também da família e das pessoas identificadas como de bem, uma categoria onde deveriam estar os Nardoni ou a casta de políticos, por exemplo. Pode vir da televisão, da internet, da própria escola. Curiosamente, nunca houve tanto controle sobre o mundo. E nunca se temeu tanto. É o paradoxo da era dos excessos e dos extremos, para citar expressões cunhadas por Gilles Lipovetsky e por Eric Hobsbawm.

O atual estado das coisas reabilita uma imagem bastante comum nos tempos das vovós – quando a iluminação pública era uma raridade: a do "mundo lá fora". A expressão já serviu para intimidar as crianças que teimavam em brincar na rua depois das 18 horas. Hoje serve para tratar de qualquer lugar que não seja o individual e fatalmente individualista.

O resultado desse raciocínio baumaniano não é outro – a sociedade do medo é também a sociedade que tranca o portão e que espera impaciente que a resposta para tantos desatinos venha do mundo lá fora, no qual o poder cabe aos tecnocratas, aos belicistas e aos cínicos. É humano temer. É humano esperar que o outro se manifeste. É humano não se sentir apto para combater o inimigo sem rosto que ronda a praça. Mas o temor não pode ser a medida de todas as coisas. A sociedade do medo faz a vida passar na janela – e aí é que são elas.

Sem uma reação da sociedade organizada, o medo vai se firmar como moeda de troca, como produto e como espetáculo – ainda que um espetáculo de mau gosto. O alerta é de consenso. Na obra Ensaios sobre o Medo – que reúne ensaios de 15 expoentes no assunto – o jornalista Adauto Novaes mata a charada desses tempos difíceis: o medo aumenta diante da sensação de fragilidade constante do homem diante do perigo.

Em tempo. O caso de Caiobá eleva ao extremo uma sensação que se tornou rotina. Todos os espaços foram tocados pela violência e pelo pavor – teme-se uma doença nova, o mal que os adultos podem fazer às crianças, os efeitos da crise mundial, a avaliação no emprego. É a mundialização do medo, já que ele está onipresente, seja no Morro-do-Boi ou num vilarejo do Afeganistão cujo nome mal se pode guardar. Não por menos, imobiliza, apavora, toma conta de todas as instâncias sociais, como tão bem define a livre-pensadora argentina Beatriz Sarlo, outra estudiosa do assunto.

Novaes – novamente – é quem aponta uma saída. O estado das coisas é chamado de barbárie, mas deveria ser entendido como "ausência de civilização". As sociedades que redefinirem que tipo de mundo querem ser, e o futuro com o qual sonham, certamente inibirão a violência mais rapidamente. Essa crença pode não consolar muito diante da tragédia que vitimou Osíris Del Corso e sua namorada. Mas certamente é o que devemos a pessoas como eles. É um bom recomeço.

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