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Nota baixa em mobilidade. Semana passada, a Gazeta do Povo publicou o resultado do Índice de Bem-Estar Urbano, o Ibeu, um estudo do Observatório das Metrópoles que indicava o que os olhos já veem e o coração sente. Quanto menor o investimento em transporte, menor o desenvolvimento. Quanto maior a concentração de dinheiro nas cidades polo – aquelas que encabeçam as regiões metropolitanas – mais se reduzem as chances de diminuir as disparidades sociais, a violência e o que mais demandar da concentração de renda e de gente por metro quadrado.

Não se trata, a rigor, de uma conta dessas que exigem malabarismos mentais e um computador da Nasa. Principalmente para quem mora em Curitiba, uma das cidades avaliadas, e constata as diferenças gritantes entre a capital e suas vizinhas. Os itens estudados pelo Ibeu são serviços (água e lixo, por exemplo), habitação e, claro, mobilidade. A capital tem os melhores resultados nacionais, ao lado de Porto Alegre. Mas faz parte das regiões que perderam pontos no transporte, o que é um péssimo indicativo: com coletivos ruins, todo o resto está a perigo. Às falas.

Com exceção de São José dos Pinhais e de Araucária – e, em certa medida, da emergente Fazenda Rio Grande – a cidade mais importante do estado vive cercada de municípios cuja qualidade de vida em muito se diferencia da sua. Trata-se de uma daquelas aberrações que viraram normalidade. A pergunta que sempre martela os ouvidos é: que diabos de desenvolvimento é esse que só consegue espalhar sub-habitação, evasão escolar e subemprego ao seu redor. Que mistérios rondam a incapacidade de os avanços de Curitiba contaminarem os que estão próximos.

A resposta, na ponta da língua, é sempre a mesma. A Constituição não prevê gestão metropolitana, ou pelo menos não da maneira desejável em tempos de supercidades, pipocando por aí feito Tóquios ou Nova Yorks. E mesmo que um modelo conjunto de administração pública fosse implantado, esbarraríamos nas lutas partidárias, impedindo que a região A dividisse suas conquistas com a região B, confirmando a inabilidade do jogo político em gerar racionalidade administrativa. Eis uma cantilena conveniente e preguiçosa.

Desde que vieram à tona iniciativas como a do Observatório das Metrópoles – que reúne estudos de um pool de pesquisadores ligados, em sua maioria, às universidades – e da Rede Latino-Americana de Informação Tecnológica, a Ritla, entre outros, não faltam dados e sugestões aos gestores públicos. Poderiam se esbaldar e fazer bonito. E ainda que lhes faltasse elementos sobre como "governar junto" haveria sempre os exemplos vindos de fora. É o caso da Alemanha, modelo mundial de gestão de municípios.

Volta-se ao ponto: falta vontade e inteligência. Não dividir é empobrecer. A pujança de Curitiba corre o risco de virar poeira a cada vez que Piraquara tem seu patrimônio ambiental ameaçado, que Almirante Tamandaré se faveliza ou que Campo Largo ou a Colombo se descaracterizam, surpreendendo os distraídos com a mais doída das verdades: essas cidades não são extensões mimosas de Santa Felicidade ou do Umbará, às quais julgamos parecidas. Crescem em desmesura e se embrutecem. Em miúdos, estamos demasiado perto e ligados para aplicar a lógica dos quintais, com cada um segurando suas galinhas.

E o transporte – bem ele – é o pai de todos os males, como indica o Observatório. A disparidade municipal começa na roleta. Como se diz no senso comum, seria cômico, não fosse trágico. De todas as qualidades de Curitiba, a que mais é citada, longe de nossas divisas, é a do transporte público exemplar, o melhor dos mundos, encarnação das táticas madrilenhas e parisienses em terras de pinheirais. Em se tratando de gestão metropolitana, essa desconhecida, o transporte é sempre apontado como o tesouro que nos iguala.

A capital do estado e suas vizinhas próximas dividem o mesmo sistema de ônibus. Nada mais natural, já que, de acordo com estudo anterior do próprio Observatório das Metrópoles, cerca de 60% dos moradores do Primeiro Anel – as cidades que fazem divisa ou estão muito próximas de Curitiba – ganham seu pão e gastam seu dinheiro por aqui.

Pois é – mas o esgotamento do sistema, sentido de segunda a sábado na pele de quem mora na capital, afeta os que usam a rede integrada. Raro encontrar entre os usuários um que lance elogios rasgados às linhas que enfrentam todos os dias, como se fizessem um safári.

O problema não se resume ao tempo de espera, aqueles 60 minutos no ponto a cada viagem, roubando duas horas por dia só em deslocamento, montante que é no mínimo imoral e francamente desumano. Os estudos mostram que quem mora longe dos equipamentos – sejam eles industriais, sociais ou culturais – e não têm como chegar até esses destinos de forma eficiente, encontra-se numa zona de exclusão muito mais feroz do que se imagina.

Como diz o urbanista Mike Davis – autor de Cidades Mortas e de Planeta Favela – essas disparidades verificadas nos grandes centros nada mais são do que o urbano convivendo com o antiurbano. Ou "urbanização perversa". As cidades, espaços de troca e de uso por excelência, se desmentem em sua natureza, sonegando de seus moradores o acesso ao conhecimento, maior dos motivos para alguém deixar um distrito rural para viver numa metrópole.

O que espanta é a passividade com que esses dados são vistos, acentuando nossa crise de civismo e, tão ruim quanto, a falta de associação, já crônica, entre informação e desenvolvimento. Entre os dados que mais chamam atenção na pesquisa do Observatório está a nítida ligação entre ter um bom serviço de ônibus e acesso ao lazer, por exemplo. E o lazer – parte do entretenimento – é a terceira maior indústria do mundo. Gera riqueza. E saber.

A sociedade que não consegue equacionar esse direito outra coisa não faz senão reabilitar – debaixo da aparência de modernidade – o que há de pior da Era Medieval. Já são horas de mudar. Tem alguém no ponto esperando para ir à biblioteca ou ao cinema. Ele não pode esperar mais: o futuro se diverte e se instrui no presente.

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