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| Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Nesta quarta-feira (3), o Supremo Tribunal Federal (STF) cancelou o julgamento de todos os processos que estavam em pauta para hospedar uma sessão solene destinada a receber um manifesto encabeçado pelo atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Assinado por mais de 200 instituições – entre partidos, sindicatos e representantes de empresas –, o manifesto tem a intenção de mostrar “apoio” ao STF e “repudiar os ataques contra o guardião da Constituição da República”. O evento acabou se transformando em um ato político de desagravo ao tribunal, em um contexto no qual os agentes públicos parecem não estar distinguindo apropriadamente o que está em jogo.

Uma das frases mais ouvidas durante o evento é que é preciso “respeitar as instituições”. Respeitar o Judiciário é obedecer a suas decisões e proteger sua independência funcional. Esse respeito, no entanto, não se confunde com a imunidade a críticas, como a atitude voluntarista de alguns ministros da corte às vezes faz parecer. Uma das emanações da liberdade de expressão é a liberdade de crítica, cujo espaço de exercício deve ser tanto maior quanto mais pública é a instituição ou o agente que é alvo dela. Ao mesmo tempo, o campo da política nas democracias é, por excelência, aquele em que a liberdade de criticar – com palavras duras, se necessário – deve ser mais ampla.

Por óbvio, nada disso autoriza a calúnia, a difamação e a injúria contra ministros da corte, que são limites previstos em lei, e justificáveis, à liberdade de expressão. Também não se desconhece que há muitas críticas pueris à Suprema Corte, como a que pede o “fim do STF” ou as que defendem o impeachment coletivo dos ministros. Tribunais de cúpula de um Judiciário independente são essenciais para garantir a separação dos poderes, a aplicação imparcial da lei e os direitos individuais. Mas mesmo essas críticas – por mais que sejam profundamente equivocadas –, se não configurarem crime de incitação à violência ou a golpe de estado, continuam protegidas pela liberdade de expressão.

Respeitar o Judiciário é obedecer a suas decisões e proteger sua independência funcional

Diante desse quadro, os ministros do STF devem ter a clareza de que a postura ativista que o Supremo vem assumindo nos últimos anos não só o coloca no centro dos embates políticos nacionais, como também explica, em grande medida, a reação de cidadãos que veem o tribunal usurpar competências que a Constituição não lhe empresta. Encontrar o caminho de volta à harmonia entre os poderes não é fácil. Se cancelar a pauta de julgamentos – já extremamente abarrotada – para hospedar um evento autocongratulatório e descolado das preocupações que externamos acima parece despropositado, o inquérito sigiloso aberto em 14 de março pelo próprio presidente do Supremo, Dias Toffoli, para investigar notícias falsas contra o tribunal é uma medida ainda mais grave e equivocada.

O pano de fundo tanto da instalação do inquérito quanto do ato desta quarta-feira é a crescente preocupação, entre ministros do STF, com o que chamam de “milícias virtuais”, que muitos acreditam agir coordenadamente na disseminação de críticas à corte e, inclusive, creem ter ligações com agentes públicos. Se esse realmente for o caso, o poder público deve responder de forma técnica e com o máximo respeito à lei. Mas não é isso que se vê no inquérito aberto por Dias Toffoli. O princípio básico que orienta a ação de todo o Judiciário, e que é garantia de sua imparcialidade, é o da “inércia” – ou seja, os juízes só agem se provocados por quem pode ser parte de um processo. Esse princípio, aliás, é sempre lembrado pelos ministros do Supremo quando são provocados a decidir sobre os temas cuja decisão deveria caber ao Congresso Nacional. Toffoli, no entanto, instalou o inquérito sem requisição do Ministério Público ou ofício da autoridade policial. A consequência é drástica para qualquer cidadão razoável, sem sequer formação jurídica: o Judiciário decidiu investigar, investiga e, eventualmente, julgará e condenará quem quer que seja.

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Os problemas não param por aí. Em uma interpretação no mínimo heterodoxa do regimento, Toffoli atribuiu a relatoria do inquérito, sem sorteio, ao ministro Alexandre de Moraes, que convocou delegados de sua confiança para trabalhar no caso. O inquérito tampouco respeitou a exigência de delimitar um fato e suas circunstâncias, o que baliza qualquer investigação no país. Ainda mais, sem apontar investigados concretos, não há sequer como garantir que o STF seria o foro adequado para o desenrolar da investigação. Confrontado com essas questões, o ministro Alexandre de Moraes ainda disse que os críticos “podem espernear à vontade”, valendo-se do fato de que, na prática, não há como recorrer da decisão de Toffoli sem que o próprio Toffoli assim o queira.

Diante de fatos como esses, que infelizmente se tornaram corriqueiros, não espanta que as críticas ao STF às vezes sejam ferinas – embora se deva lamentar a leviandade de muitas delas. Já defendemos neste espaço que a melhor resposta que o Supremo poderia dar a seus críticos é investir em uma agenda positiva que melhore a eficiência do tribunal e o transforme em um verdadeiro tribunal constitucional, insulando-o da tentação de se imiscuir em cada polêmica da vida nacional. Mas os ministros da corte precisam, além disso, ter a sabedoria de entender que os brasileiros desejam um tribunal mais transparente quanto às relações pessoais de seus integrantes; que participe, por inteiro e de forma colegiada, do esforço de combate à corrupção; e que respeite suas atribuições sem avançar, com justificativas mal ajambradas, sobre temas que a Constituição legou ao Congresso Nacional. Sem isso, não há sessão solene que faça milagres.

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