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Estado, governo e administração pública são coisas distintas. Embora em ciências políticas seja primária a distinção entre tais entes, poucos são os brasileiros que atentam para a mistura proposital e perigosa que se faz atualmente no país entre eles, em escala, dimensão e profundidade que encontra poucos paralelos na nossa história republicana, salvo nos períodos marcados pela supressão da democracia representativa.

O Estado nacional, como o concebemos hoje em dia, é uma instituição permanente formada por povo e território, politicamente organizada, soberana e regida por uma constituição. Já o governo é o grupo, por natureza transitório, que cumpre a tarefa de definir políticas públicas, utilizando-se das estruturas do serviço público para colocá-las em prática. À mistura entre essas três instâncias, caracterizada pela ocupação político-partidária de todos os espaços pelo grupo que detém o governo, dá-se o nome de aparelhamento de Estado. Assim age com objetivo mais ou menos explícito: o de perpetuar-se no poder.

Fatos importantes recentes da conjuntura nacional têm-nos colocado diante dessa realidade. Começando pelo, talvez, menos grave deles, embora emblemático do ponto de vista da caracterização do que afirmamos, tivemos o caso em que figurou como protagonista a ex-secretária-geral da Receita Federal Lina Vieira. A Receita é um desses órgãos permanentes da administração que devem servir ao Estado e não ao governo – mas sua então titular foi chamada pela chefe transitória da Casa Civil (órgão de governo), Dilma Roussef, candidata do PT à Presidência da República, para dela ouvir suposta insinuação de que deveria dar proteção a um aliado político, o senador José Sarney.

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, embora procurando distanciar-se dos casos concretos, é um dos críticos dessa anomalia. "Quando se fala de disputa de sindicatos e de associações em órgãos como Receita, Procuradorias de Fazenda ou Polícia Federal, nós estamos contaminando o Estado com o vírus da política partidária, que é extremamente negativo", disse ele em recente entrevista.

A confusão entre Estado, governo e administração para dela extrair benefício para o grupo que busca manter o poder político caracteriza a distorção, claramente presente no episódio Lina Vieira/Dilma Roussef. Fosse ele o único, seria tratado apenas como um incidente, uma exceção lamentável, mas compreensível diante da complexidade das relações internas do arcabouço público. Entretanto, quando a mesma prática se reproduz como regra em todas as instâncias, está-se diante de uma patologia extremamente prejudicial à democracia e à preservação das normas éticas que devem permear a gerência do Estado, na medida em que o interesse público sucumbe à ambição de particulares.

Tal prática se evidencia pela nomeação aos milhares de militantes para cargos comissionados, aos quais se dá poderes discricionários para distribuição de verbas, vantagens, posições... invariavelmente em troca do benefício político-partidário-eleitoral que disso se pode extrair. Invade áreas estratégicas para o desenvolvimento econômico e social. A Petrobras, por exemplo, é frequentemente acusada pela concessão de esdrúxulos e caros patrocínios que, sob a capa de promoção cultural ou ambiental, costumam apenas atender ao interesse da militância.

Invade, também, áreas que deveriam ser totalmente infensas a quaisquer tipos de influência que possam caracterizar o desvio do interesse público para o interesse privado. São, nesse sentido, emblemáticos também os casos das agências reguladoras – cujos dirigentes, por imposição legal, devem ser nomeados a partir de suas competências técnicas para mandatos definidos e serem irremovíveis.

Destinadas exatamente a promover o equilíbrio entre os altos interesses do Estado, o interesse coletivo e o interesse dos setores econômicos, a agências reguladoras deveriam estar acima das conjunturas imediatas da política partidária, do interesse dos agentes momentaneamente à frente do governo. Entretanto, não só foram tomadas e loteadas por representantes dos grupos associados que dividem o governo, como, atualmente, correm o risco de perder inúmeras de suas funções essenciais, a ser transferidas, segundo propõe o governo ao Congresso, para os ministérios correspondentes – isto é, para os detentores dos cargos politicamente distribuídos.

É inconcebível que numa democracia que aspira assemelhar-se com as melhores, estáveis e mais consolidadas do mundo, se promova tal concentração de poder. O prejuízo será geral: perdem o Estado, a sociedade, a administração pública e o próprio governo. Por fim, perde a própria democracia.

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