• Carregando...

Hoje a seleção genética é usada com fins terapêuticos, mas não seria exagero pensar em um cenário no qual famílias com recursos financeiros suficientes queiram determinar características físicas dos filhos

Na última segunda-feira, a Gazeta do Povo contou a história de Maria Clara Cunha, que nasceu em fevereiro e foi criada "sob medida" para salvar a irmã mais velha, Maria Vitória, 5 anos, portadora de talassemia major, uma doença genética hereditária. Por meio de seleção genética, os pais quiseram garantir que o bebê não apenas estivesse livre da doença, mas também fosse compatível com a irmã para que pudesse doar a ela células-tronco do cordão umbilical em um transplante, que até o momento ainda não foi realizado.

Apesar das melhores intenções dos pais – cuja dor ao ver a situação da filha doente é totalmente compreensível – e das declarações dos médicos envolvidos no procedimento, pioneiro no Brasil, a seleção genética que levou ao nascimento de Maria Clara preocupa porque revela uma mentalidade utilitarista, em que prevalece o que os norte-americanos descrevem com a expressão might makes right – se algo é tecnicamente possível, então também seria moralmente correto. No entanto, filhos devem ser desejados e amados pelo que eles são, em si, e não pelo que podem proporcionar à família ou à sociedade.

Um episódio semelhante, ocorrido na Espanha em 2009, foi transformado em documentário. A família Mariscal-Puertas decidiu empregar a seleção genética para ter Javier e salvar Andrés, também portador de talassemia. O transplante de células-tronco foi bem-sucedido e, perto do lançamento do documentário, a mãe dos garotos afirmou que não gostava do termo "bebê-medicamento", preferindo "bebê-milagre". Mas jogos de palavras não alteram a essência das coisas, já que indiscutivelmente o propósito original do bebê é fornecer a terapia que proporcionará a cura do irmão mais velho.

Tanto Javier quanto Maria Clara nasceram cercados de expectativas e carregando uma carga impressionantemente pesada – a de salvar uma outra vida. Se nem mesmo muitos adultos são capazes de suportar tamanha responsabilidade, colocá-la nos ombros de crianças soa como um exagero. Neste momento é preciso se perguntar o que aconteceria se o transplante de células-tronco se mostrasse infrutífero ou se, por alguma falha humana, se descobrisse que o bebê nascido não tinha as características necessárias para salvar o irmão. A criança acabaria crescendo em um ambiente de frustração (ainda que disfarçada) por "não ter cumprido seu propósito", colocando um fardo adicional sobre esta pequena vida.

Se tudo isso se aplica à criança que teve a sorte de nascer, também é motivo de preocupação a indiferença com que são tratadas todas as demais vidas humanas geradas no processo que levou até Maria Clara: embriões, saudáveis ou não, acabam indefinidamente congelados ou são simplesmente descartados – a "solução" mais comum, nas palavras do próprio médico que atendeu os pais de Maria Clara. São seres humanos cujo único "defeito" foi não ter os genes corretos – ou também apresentariam talassemia ou, mesmo sendo saudáveis, não tinham as características exigidas para proporcionar a cura de Maria Vitória. Deve-se ressaltar que eugenia é eugenia independentemente de ocorrer no útero, em laboratório ou mesmo após o parto, e também independe do objetivo da seleção; do contrário, acaba-se legitimando o pensamento de que os fins justificam quaisquer meios.

O estado atual dos procedimentos de seleção genética já apresenta razões suficientes, em número e em gravidade, para que a técnica seja vista com desconfiança. Mas a experiência demonstra que, uma vez que a porta é aberta, torna-se cada vez mais fácil encontrar justificativas morais e aprimorar a tecnologia em uma direção cada vez mais permissiva. Geneticistas entrevistados pela reportagem argumentem que hoje não seria possível, por exemplo, escolher a cor dos olhos; no entanto, o ritmo do avanço tecnológico permite imaginar que daqui a alguns anos esta dificuldade esteja superada. Hoje a seleção genética é usada com fins terapêuticos, mas não seria exagero pensar em um cenário no qual famílias com recursos financeiros suficientes queiram determinar características físicas dos filhos. Teríamos, então, o cúmulo do utilitarismo: bebês gerados exclusivamente para atender a caprichos dos pais. A sociedade deve se perguntar se vai esperar o monstro eugênico se revelar com toda a sua força para só então tomar alguma providência.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]