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Editorial

Perseguição a Tagliaferro é retrato da autocracia brasileira

Eduardo Tagliaferro acusa Moraes de perseguir politicamente a direita em 2022.
Eduardo Tagliaferro, ex-assessor de Alexandre de Moraes. (Foto: Alejandro Zambrana/Secom/TSE)

Diante de alguém que, dentro de uma empresa ou órgão público, presenciou ou até participou de práticas imorais ou mesmo ilegais, e depois decide levá-las a público, expondo o que sabe, como um país normal reagiria? Investigando com profundidade as alegações, para conferir sua veracidade, e punindo os responsáveis de acordo com o que fizeram, pois sociedades saudáveis sabem que os chamados “whistleblowers” contribuem para conter práticas deletérias dentro do Estado ou do setor empresarial. E o Brasil, o que faz? Ignora o escândalo denunciado enquanto persegue aquele que decidiu contar o que sabe. É o que está acontecendo com o ex-assessor do TSE Eduardo Tagliaferro.

Em agosto de 2024, o jornal Folha de S.Paulo publicou conversas entre Tagliaferro e juízes que assessoravam Alexandre de Moraes no STF, obtidas pelo jornalista Glenn Greenwald. Os diálogos mostravam que haveria um canal informal ligando os dois tribunais – à época, Moraes presidia o TSE – pela qual a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) da corte eleitoral forneceria informações usadas nos inquéritos que Moraes relatava (e ainda relata) no Supremo. Os diálogos mostram que, em muitos casos, as decisões já estariam previamente tomadas, mas era preciso buscar elementos que as justificassem; teria havido episódios de alteração de documentos, e pedidos para que Tagliaferro “usasse sua criatividade” em busca de qualquer coisa que embasasse uma desmonetização que Moraes pretendia impor.

Em vez de investigar as denúncias de Tagliaferro, o braço estatal se voltou única e exclusivamente contra o ex-assessor

Na segunda fase da “Vaza Toga”, os jornalistas Eli Vieira e David Ágape revelaram a existência de uma força-tarefa também informal, que vasculharia os perfis de investigados e réus do 8 de janeiro em busca de qualquer mensagem crítica ao STF ou ao governo. As publicações seriam reunidas em “certidões” que representariam a diferença entre ser mantido preso nos presídios da Papuda ou da Colmeia, ou aguardar a conclusão do processo em liberdade – tudo secreto, sem que nem advogados de defesa nem promotores tivessem acesso aos conteúdos. Com o aval de Moraes, militantes políticos, universidades e agências de checagem teriam até mesmo se infiltrado em grupos privados de troca de mensagens.

São acusações aterrorizantes: uma Justiça informal, paralela, que não respeita absolutamente nada nem ninguém, tendo como único combustível a “cisma” de um juiz de suprema corte. Em um país normal, como dissemos, haveria um clamor fortíssimo em toda a opinião pública e todos aqueles apontados por Eduardo Tagliaferro estariam sendo investigados com todo o rigor. Mas, no Brasil, boa parte da imprensa segue calada, cúmplice dos desmandos supremos como tem sido desde 2019, e, em vez de investigar as denúncias de Tagliaferro, o braço estatal se voltou única e exclusivamente contra o ex-assessor, agora denunciado pela Procuradoria-Geral da República não só por violação de sigilo funcional, mas imputando-lhe, de forma inacreditável, os crimes de obstrução de investigação de organização criminosa, coação no curso do processo e tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Moraes já pediu à Itália, onde Tagliaferro se encontra, que extradite o ex-assessor.

A denúncia da PGR segue um roteiro padrão no qual que tudo que contrarie o STF ou atrapalhe de alguma forma a sanha justiceira de Moraes se torna tentativa de “desestabilizar as instituições republicanas”. Segundo a PGR, Eduardo Tagliaferro “teve o nítido propósito de tentar colocar em dúvida a legitimidade e a lisura de importantes investigações que seguem em curso no Supremo Tribunal Federal”. Parte-se do pressuposto de que tudo que o STF faça tenha, automaticamente, sua legitimidade e sua lisura garantidas. Mas não: de fato, as tais “importantes investigações” de fato carecem de legitimidade e de lisura, motivo pelo qual precisam mesmo ser colocadas em dúvida. Sendo verdadeiras as denúncias, não deveria restar pedra sobre pedra de todas as investigações e inquéritos conduzidos por Moraes, e todos os responsáveis deveriam ser devidamente varridos da vida pública pela forma espúria como usaram os poderes que lhes foram concedidos.

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Sem investigar as denúncias por um único segundo que fosse, a PGR já concluiu que Eduardo Tagliaferro não só mente, mas também mente com um objetivo declarado, o de causar tumulto, coagir autoridades (de que forma, ninguém o sabe) e “atacar a democracia” no Brasil. Em uma ironia trágica, é justamente o órgão chefiado por Paulo Gonet que age de forma antidemocrática, empurrando um escândalo para debaixo do tapete e perseguindo quem arriscou muita coisa para trazê-lo ao conhecimento dos brasileiros. Por mais que o Brasil não tenha uma legislação adequada para lidar com casos de whistleblowing, especialmente no serviço público, abrir mão de investigar as denúncias de Tagliaferro é uma omissão que não tem a menor lógica, e isso independe de as primeiras conversas, publicadas na Folha, terem sido entregues pelo ex-assessor (o que ele nega) ou obtidas à sua revelia por algum outro meio.

Se a PGR não quer fazer o seu trabalho, no entanto, haveria uma instância que poderia muito bem suprir essa lacuna: a CPI do Abuso de Autoridade na Câmara dos Deputados, que já cumpriu todos os requisitos necessários para sua abertura, mas não funciona por decisão covarde do presidente da casa, Hugo Motta. Ela seria a oportunidade ideal para que Tagliaferro possa, enfim, contar tudo o que sabe e mostrar tudo o que tem, de uma forma que nem mesmo a ala da imprensa que se portou como avestruz diante das duas Vaza Toga poderia ignorar. Sem isso, o Supremo e suas linhas auxiliares, como a PGR, continuarão impondo ao Brasil uma autocracia juristocrática, e calando qualquer um que tente expor as entranhas desse sistema.

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