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Flávio Dino
Ministro da Justiça e Senacon apresentam medida cautelar ao Google por “publicidade abusiva” contra o PL das Fake News.| Foto: Tom Costa/MJSP

O Projeto de Lei 2.630/20, também conhecido como “PL das Fake News”, teve sua votação adiada. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o havia incluído na pauta da sessão desta terça-feira após se encontrar com líderes partidários ao longo do dia, em um sinal de que, apesar de a oposição ao projeto ter aumentado consideravelmente nos últimos dias, havia grandes chances de ele passar pelo plenário – pautar textos de interesse do governo apenas quando há certeza de aprovação é uma das maneiras de agradecer ao presidente Lula pelo apoio da esquerda à avassaladora reeleição conquistada por Lira em fevereiro deste ano. No entanto, algo mudou em poucas horas, a ponto de o relator Orlando Silva (PCdoB-SP) ter tomado a iniciativa de pedir o adiamento; ele foi seguido por partidos da base governista, enquanto legendas de oposição insistiam em realizar a votação ainda na terça-feira, indicando que a probabilidade de derrota do PL era significativa. Lira, então, optou por retirar o tema da pauta.

Independentemente do desfecho da sessão, alguns dos últimos desdobramentos do debate sobre o PL 2.630 deveriam preocupar todos os brasileiros, tanto favoráveis quanto contrários ao projeto de lei ora em análise. Menos relevantes – embora dignas de menção – são as denúncias de que algumas big techs estariam apagando ou “escondendo” publicações favoráveis ao projeto; a reclamação evidenciou a hipocrisia dos denunciantes, entre os quais estão influenciadores e milícias digitais que figuram entre os maiores entusiastas da moderação pesada de conteúdos quando feita contra aqueles de quem discordam. Muito mais grave foi o uso do braço estatal contra quem tem apresentado seus argumentos contrários ao projeto de lei, caso de empresas como Google e Meta (proprietária do Facebook e do Instagram).

Em uma sociedade democrática, todos, absolutamente todos, têm o direito de emitir suas opiniões e oferecer seus argumentos favoráveis ou contrários a uma proposição em curso no parlamento

O Google, por exemplo, publicou em seu blog um texto intitulado “Como o PL 2.630 pode piorar sua internet”. Em resposta, ministros de Estado como Flávio Dino (Justiça) e senadores como Randolfe Rodrigues (Rede-AP) defenderam que o governo adotasse medidas contra as big techs, argumentando que estava em curso uma “tentativa imoral de inverter os termos do debate”. O secretário nacional do Consumidor, Wadih Damous, criticou o que chamou de “um verdadeiro arsenal de guerra contra o PL”, afirmando que as plataformas “se transformaram em verdadeiras trincheiras da extrema-direita no Brasil”. No fim, a pasta de Dino e a secretaria de Damous anunciaram medida cautelar e multa por “publicidade enganosa e abusiva” contra o Google, que retirou o texto do ar. Além disso, o Ministério Público Federal de São Paulo também notificou Google e Meta questionando se as empresas haviam alterado seus algoritmos para privilegiar conteúdos contrários ao PL 2.630 e reduzir o alcance das publicações ou anúncios favoráveis, prática que ambas as empresas negam. E, em uma terceira frente, o ministro do STF Alexandre de Moraes determinou que a Polícia Federal ouça os presidentes de Google, Meta, Spotify e da produtora de conteúdo Brasil Paralelo; ao justificar sua decisão, alegou que as empresas poderiam “impactar de forma ilegal e imoral a opinião pública e o voto dos parlamentares”.

Ora, é bastante evidente que, em uma sociedade democrática, todos, absolutamente todos, têm o direito de emitir suas opiniões e oferecer seus argumentos favoráveis ou contrários a uma proposição em curso no parlamento – e o objetivo desse esforço é exatamente convencer os parlamentares que votarão tais proposições. Neste processo, os interessados são livres para usar os instrumentos que têm à disposição para fazer a defesa ou a crítica de um projeto de lei, e seria absurdo pensar em cercear o debate negando carta de cidadania a um dos lados. Para citarmos outros temas que causam enorme discussão na sociedade, aqueles que gostariam de ver o aborto legalizado, os defensores de pautas identitárias ligadas à defesa de minorias, os promotores da descriminalização do porte e uso de drogas, ou os apoiadores do desarmamento civil deveriam ter (como, aliás, têm) todo o direito a promover sua posição na imprensa, na academia ou nas ruas; negar-lhes essa possibilidade seria uma grave violação da liberdade de expressão, uma negação da democracia.

Da mesma forma, é inconcebível pretender que empresas diretamente afetadas pelo que venha a ser aprovado não tenham o direito de dar sua opinião contrária ao PL 2.630, ou só possam fazê-lo de forma bastante limitada, sob o argumento de que estariam cometendo “imoralidade” ou “abuso” caso se manifestassem livremente. Assim como não faria o menor sentido considerar “imoralidade” ou “abuso” o fato de diversos veículos de imprensa, cujo alcance nacional é inegável, estarem apoiando o PL 2.630 em editoriais – que refletem a posição institucional de cada veículo, assim como o Google havia feito – e reportagens; também não há “abuso” nem “imoralidade” quando influenciadores usam sua celebridade para convencer seus milhões de seguidores a respeito dos méritos que enxergam no projeto. Os argumentos, seja favoráveis, seja contrários, se depuram justamente por meio do debate, do embate de ideias, do exame de sua razoabilidade e de sua plausibilidade; jamais podem ser coibidos nem desqualificados como fake news, expressão que deveria designar apenas afirmações factuais comprovadamente falsas, e não opiniões, conjecturas ou prognósticos a respeito do que pode ocorrer no futuro.

Que tudo isso ainda ocorra exatamente no contexto de um debate sobre a regulamentação das mídias sociais e seu impacto sobre a liberdade de expressão é algo que deveria preocupar ainda mais os brasileiros – repetimos, independentemente da posição que tenham sobre o PL 2.630. Aqui, já estamos muito além de um suposto combate à “desinformação” ou ao “discurso de ódio”, para citar alguns dos termos mais alegados para restringir a liberdade de expressão no Brasil: o que ocorreu ao longo desta segunda-feira com as big techs e outras empresas contrárias ao PL das Fake News foi a desqualificação e até a supressão de um dos lados envolvidos em um debate lícito. A oposição ao PL 2.630 se tornou uma crimideia, e isso é incompatível com uma nação que se pretende democrática.

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