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Editorial

Por que a anistia ganhou força

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Cartaz exibido em manifestação pela anistia na Avenida Paulista, em 6 de abril. (Foto: Bruno Sznajderman/Gazeta do Povo)

No último domingo, dia 6, dezenas de milhares de manifestantes foram à Avenida Paulista, em São Paulo, para se manifestar em defesa da anistia aos réus e condenados do 8 de janeiro. O ex-presidente Jair Bolsonaro participou do ato, assim como vários governadores, incluindo alguns que nem podem ser considerados tão próximos de Bolsonaro, e outros que chegaram até a ter algumas diferenças com o ex-presidente – são presenças que, independentemente de qualquer cálculo político que se possa vir a fazer com vistas a 2026, demonstram a força que a pauta da anistia ganhou, a ponto de levar à Paulista autoridades que até então vinham se distanciando desses atos.

É certo que o clamor pela anistia foi intensificado após o início do julgamento da cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, que está a um voto de ser condenada a 14 anos de prisão por deterioração de patrimônio tombado, associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, e dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, e com considerável prejuízo para a vítima – ainda que a única evidência contra ela sejam as imagens em que Débora escreve duas palavras com batom na estátua da Justiça, diante do prédio do STF. Quem se indignou só agora, forçoso dizer, o faz com grande atraso, pois a cabeleireira vem sendo vítima do arbítrio da dupla PGR-STF ao longo de dois anos, nos quais ficou privada de ver os filhos pequenos; mas antes tarde do que nunca.

Se PGR e STF tivessem agido corretamente desde o início, ninguém estaria falando em anistia; o tema surge porque ela se tornou a única forma de consertar os abusos cometidos

A anistia, no entanto, não é apenas sobre Débora. Quem abraça essa pauta o faz porque acredita não haver outra forma de consertar a longuíssima cadeia de abusos e arbitrariedades cometidas pela Procuradoria-Geral da República e pelo Supremo Tribunal Federal desde o lamentável episódio do 8 de janeiro. Esta é a verdade que precisa ser dita: só se fala em anistia agora porque PGR e STF, nestes pouco mais de dois anos, fizeram um trabalho digno de regimes de exceção enquanto afirmavam estar “defendendo a democracia”.

A anistia seria desnecessária se, logo na sequência do 8 de janeiro, as investigações tivessem se concentrado em analisar todos as evidências relacionadas à invasão da Praça dos Três Poderes, para oferecer denúncias individualizadas, imputando a cada manifestante apenas aquilo que ele realmente e comprovadamente fez naquele dia. Se apenas aqueles que representassem risco real à coletividade fossem mantidos em prisão preventiva. Se cada um fosse julgado no juízo competente, como manda a Constituição. Se a maioria dos ministros do Supremo tivesse rejeitado as denúncias genéricas da PGR, lembrando-se ainda de que o chamado “crime impossível” não se pune, segundo o artigo 17 do Código Penal. Se centenas de pessoas não estivessem sendo condenadas a penas que nem homicidas ou outros bandidos perigosos recebem, sem nenhuma evidência que embasasse a condenação. Em resumo: se os manifestantes estivessem sendo acusados, julgados e condenados apenas pelo que realmente fizeram ou deixaram de fazer naquele dia, em estrita obediência ao devido processo legal, não haveria por que falar em anistia.

Mas não foi o que ocorreu. Após uma prisão em massa que superou até mesmo os recordes da ditadura militar, centenas de brasileiros foram mantidos encarcerados sem que representassem risco algum, apenas como castigo – incluindo casos em que a lei ou a jurisprudência garantiam o direito à prisão domiciliar, como Débora, mas também idosos e doentes. A PGR se omitiu e, em vez de individualizar as condutas, apelou para a muleta do “crime multitudinário”, imputando a todos uma mesma mentalidade e uma mesma intenção golpista, oferecendo denúncias idênticas para manifestantes cujas circunstâncias eram radicalmente diferentes. E os ministros do STF, com raras exceções, têm endossado tudo isso. O resultado é a injustiça em estado puro – mais que isso, como temos dito desde que os julgamentos começaram, é justiçamento.

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Apesar de manifestações de ministros como Luiz Fux, que pediu vista durante o julgamento de Débora e afirmou que deve propor uma pena menor, parece muito improvável que a corte dê uma guinada de 180 graus e, de agora em diante, passe a julgar com justiça. E, ainda que o faça, há inúmeros brasileiros que já foram condenados sem provas, e outros que aguardam julgamento em condições degradantes, como a septuagenária Vildete Guardia. Ninguém tem como devolver aos réus e condenados o tempo passado longe dos seus, nem como restaurar a saúde daqueles cujas condições se deterioraram devido ao tempo na prisão. Em especial, ninguém tem como trazer de volta à vida Cleriston Pereira da Cunha, que morreu na Papuda em um raro caso em que a PGR fez o certo, pedindo sua soltura, negada por Alexandre de Moraes. Não seria exagero propor que, ao menos em alguns casos, o Estado tivesse de indenizar algumas (ou muitas) vítimas de arbítrio.

Não se trata, portanto, de simplesmente “rever penas”, como agora sugere Gilmar Mendes; seria preciso admitir que há um vício de origem que contaminou toda a ação penal. A investigação foi omissa, a denúncia foi inepta e o julgamento foi enviesado. O Supremo estaria disposto a ir tão longe e aplicar a si mesmo, desta vez corretamente, os critérios que usa equivocadamente para soltar traficantes e corruptos confessos? Se não estiver, a anistia desponta como a solução possível. E, se com ela acabarem soltos também pessoas que realmente deveriam estar na cadeia, aqueles que de fato invadiram, vandalizaram, depredaram, os que até mesmo queriam fazer o 8 de janeiro uma tentativa de golpe, isso só acontecerá porque, na impossibilidade de separar o joio do trigo, a impunidade desses últimos será o preço a pagar para que se restabeleça a justiça, maculada pelos abusos da PGR e do STF.

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