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Nos idos de 1970, havia uma prática em Curitiba que mereceria ir para os álbuns de retratos. Aos sábados, moradores do entorno do Centro – particularmente os dos bairros tradicionais da Zona Norte e os das áreas mais urbanizadas da Zona Sul, como Água Verde e Portão – arrastavam as mangueiras de água até as calçadas e regavam as árvores recém-plantadas pela prefeitura.

Não chegava a ser um milagre. Fazer jardins e hortas, assim como cuidar de pequenos bosques "nos fundos" estava entre as marcas da sociedade de imigração. Mas como em qualquer cidade na faixa dos 600 mil habitantes – população de então – o divórcio entre o espaço público e o privado já se acentuava, liberando os moradores de cuidados com um canteiro sequer que estivesse para fora de seu muro. Foi por certo preciso um bom argumento para que acontecessem aqueles mutirões sabáticos, sem polícia e sem multa.

Aos que bem reparam, hoje há árvores altas e frondosas nas Mercês e no Juvevê, para citar duas regiões em que as cerimônias de regação aconteciam. E não raro, aqui e ali, o corte de árvores para alargar ruas e adular o trânsito gera protestos bem azeitados. O contador de histórias Carlos Daitschmann, qual o professor de Literatura da Praça da Paz Celestial, já se colocou à frente de uma máquina para impedir que uma espécie fosse arrancada da Pracinha do Batel.

Pudera: as pobres plantas – hoje rotuladas de exóticas e apontadas como verdadeiras inimigas públicas número 1 – cresceram junto com uma parcela de cidadãos e, pela ordem natural das coisas, deveriam sobreviver a eles. Mas não vem ao caso.

O que se quer argumentar aqui é que os curitibanos modelaram uma imagem de sua cidade, principalmente a partir dos anos Jaime Lerner e Saul Raiz – os que nos convenceram a regar plantas nas calçadas. Na esteira desse ato cívico simples como plantar abóboras, foram ficando para trás nossas paisagens cinzentas, alagadas e algo transilvânicas – fartas na prosa de Dalton Trevisan – e ganhando terreno os cenários irreverentes, boêmios e cosmopolitas, próprios da obra do poeta Paulo Leminski.

Não se pode dizer, contudo, que Curitiba, à moda de Paris, Londres, São Petersburgo ou Nova Iorque, seja uma cidade moldada pela literatura. Nos últimos 40 anos nós nos tornamos, para tomar a expressão de Nestor Garcia Canclini, uma "cidade espetáculo", desenhada na prancheta de arquitetos – alguns brilhantes de fato –, nos brainstorms de publicitários, mas também na frieza dos tecnocratas. Cada vez mais são eles, inclusive, os nossos poetas e prosadores, o que não é uma boa notícia.

Nas décadas em que se distanciou da imagem de lugar de passagem, Curitiba passou a ser vista como um feudo rico e promissor ao qual cabia o título de "Cidade Sorriso", criado pelo Emiliano Perneta. Outros slogans se sucederam, criando variações para o tema: "cidade-modelo": "capital ecológica", "capital social", "capital da cultura".

Em um de seus escritos sobre Curitiba, a semióloga e estudiosa de cidades Lucrecia D’Alessio Ferrara aponta para um perigo – o de que, tão acostumados a se ver a partir de seus simulacros, os curitibanos estejam negligenciando o fato de que uma cidade tem de ser reconhecida continuamente.

Isso talvez explique a negação de fatos evidentes – como a criminalidade que a coloca entre as mais violentas do país, o trânsito nas raias da insanidade, a participação política sofrível, a favelização de 200 mil moradores, a falta de cuidado com jovens empobrecidos, a sociabilidade comprometida por políticas que favorecem em demasia o "cidadão consumidor", o cinismo na gestão do patrimônio. "Os outros lugares são piores", repetem amiúde os curitibanos que creditam poderes divinatórios às propagandas dos outdoors: elas não têm poder de criar o melhor dos mundos. Tristes pinheirais.

Para não dizer que não se falou das flores, Curitiba é de fato cidade promissora no ensino básico e no atendimento nas unidades de saúde. Palmas. Mas em pratos limpos é cada vez mais difícil sustentar que se parece aos seus rótulos. Chegou a hora de redimir a capital de seus clichês. A eles.

A sociedade organizada deve se perguntar por que o nosso arrojo urbanístico não se refletiu num arrojo educacional, principalmente nas esferas do ensino médio, nosso calo. Por que a reciclagem de lixo estagnou em 20%. Por que o conhecimento acumulado desde os tempos das canaletas não saneia nosso trânsito. Por que a cidade das dezenas de sociedades étnicas e clubes do passado, do Calçadão e da Boca Maldita, se entrega à artificialidade dos shoppings e condomínios fechados.

Um refresco para todas essas questões do ano 318 pode ser seguir os conselhos de Lucrecia: não desistir de ver Curitiba. E se bem prestarmos atenção, essa moça "tá diferente". Na pesquisa de patrimônio imaterial capitaneada pelo antropólogo Ozanam de Souza, da Casa da Memória, ela remarca divisas e forma redes em torno do futebol e do hip-hop.

Nas "quadras culturais", bicicletadas, coletivos e Sohos, ela atrai a moçada, que senta no chão e pede de volta o direito à rua. Há as cooperativas de estilistas do São Francisco. E as ruas São José dos Pinhais, Isaac Ferreira da Cruz e Tijucas apinhadas de gente em todas as horas. Algo diz que os curitibanos querem regar a árvore na calçada. Tomara nos permitam esse verdadeiro espetáculo.

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