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Numa cena do filme Quase dois irmãos, de Lúcia Murat, detentos erguem uma parede entre as alas de um presídio do Rio de Janeiro. De um lado vão ficar os presos políticos, rapazes bem-nascidos da Zona Sul, ali colocados por terem se envolvido com a luta armada. De outro, homens negros e pobres, apartados da escola, e que vão formar a célula do Comando Vermelho, uma das organizações criminosas de maior monta no país.

Com essa imagem – plástica e cruel –, Murat cria um símbolo capaz de traduzir a situação em que o Brasil se meteu a partir da década de 1970. Uma muro passou a separar o país. Ele é espesso, bem cimentado, duro de ruir, e não se sabe ao certo o que existe do outro lado – o Paraíso ou o Monstro da Lagoa.

Quer-se derrubar o muro no empurrão, como se vê desde 21 de novembro, quando a Polícia Militar e as Forças Armadas deram início à tomada dos complexos do Alemão e da Penha. Mas é difícil que se consiga tamanha proeza, ainda que debaixo de aplausos, helicópteros e gentis copinhos de água para os policiais que sobem o morro. Bela cena para um outro filme – mas um analgésico para a realidade.

Não é preciso ser um sociólogo do primeiro escalão para falar da extensão Transiberiana de nossa dívida social. Nem de malabarismos intelectuais para entender que essa conta não tem como ser paga à custa de caveirões e batidas policiais pelos becos. Não se trata, é claro, de invalidar os possíveis efeitos da ocupação promovida pelas forças de segurança pública carioca, mas de ter senso de medida. Curativo, curativo é.

Bem se gostaria de que os homens de farda dessem cabo ao medo e cantarolar que "o Rio de Janeiro continua lindo". "Alô, alô, Terezinha – aquele abraço..." Enquanto se assiste pela tevê a uma guerra no nosso cenário mais desejável e mais conhecido, seria de bom tom que nos colocássemos em atitude de exame de consciência, vendo a parte que nos cabe nesse tiroteio.

A tragédia carioca, já pós-graduada em operações espetaculares, quase sempre de pouca valia, é, em boa medida a tragédia brasileira. O que acontece lá em cores fortes se repete nas regiões metropolitanas das grandes capitais e cada vez mais ganha versões faroeste no interior do país. Estamos em rede.

A solução do conflito, por tabela, não é algo que se possa assistir pela tevê para depois, confortavelmente, refestelar-se diante do seriado As cariocas. Como na melhor das cartilhas policiais, "depende de cada um de nós" mudar o curso desse rio. A dizer.

A violência urbana se transformou em nosso prato de arroz com feijão e bife. Miseravelmente, falamos dela todos os dias, mas nossas práticas educacionais, sociais, políticas e religiosas não mudaram um avo por causa disso. Eis o paradoxo. O crime se tornou o assunto da hora depois da abertura, na década de 1980, mas o descompromisso das instituições com a dissolução desse mal é de um sadismo revoltante. Não há especialistas em violência no interior das escolas. Poucos setores de responsabilidade social das empresas se ocupam da remissão da sociedade do crime.

Uma das perguntas mais recorrentes é sobre a prevenção da criminalidade. Seria natural. Mas, por ironia, a população favelizada, particulamente a jovem, é a que mais permanece roubada em seus direitos. Só uma força-tarefa pode redimir os pobres moços da atração fatal exercida pelo tráfico. Por força-tarefa se entenda escola de qualidade, oportunidades no mundo do trabalho, rede social extensa e agressiva. É uma guerra.

Do contrário, podem pouco as Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs). Não será por força dos canhões que a equação que une pobreza, desinformação, exclusão escolar vai se diluir. A violência – como defendem estudiosos do naipe da antropóloga fluminense Alba Zaluar – permanecerá um problema insolúvel e indecifrável, que em vão tentamos explicar se não nos organizarmos em torno dela. Não é seriado. Não é tevê.

Os mecanismos que levam à violência já mobilizaram uma leva de pensadores, entre ele o polonês-britânico Zygmunt Bauman. Ele parece se divertir com o absurdo, lembrando que há 50 anos qualquer um se sentia apto a explicar a Guerra do Vietnã, propondo estratégias para a paz. Hoje, o crime que acontece na esquina se assemelha à trama dos livros de suspense.

O que significam aqueles garotos, sem eira nem beira, correndo sem camisa, carregando armas e micro-ondas, em fuga do Morro do Cruzeiro? Que país é esse dos 400 mil vigilantes – um exército particular, maior sinal de que a violência se tornou um negócio? São esses e outros os personagens do varejo do tráfico.

Para além deles há um negócio internacional, que não encontra paredes por aqui. O que esses empresários prometem é atraente para jovens informais e pouco escolarizados, amantes da vida breve. Nossas fronteiras estão abertas para seus traficantes de armas e drogas. E nesse lugar tão aberto, a Justiça não é para todos – na descrença tudo fica mais fácil. As UPPs, por isso, não serão o nosso descanso. Nem o deles. Depois do show, a conversa tem de continuar.

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