
Há pouco menos de três anos, o colunista da Gazeta Francisco Escorsim se indagava: “Sei que tem um livro por aí falando sobre como as democracias morrem, mas existe algum sobre como ela renasce?”. A pergunta é essencial no atual momento brasileiro, em que constatamos com tristeza o fim da democracia em nosso país. Talvez o livro buscado por Escorsim não exista, mas a história nos mostra que sim, autoritarismos desaparecem e democracias renascem. Em alguns casos, é verdade, com derramamento de sangue, em guerras civis ou golpes de Estado; em outros, pela entrega voluntária do poder por parte do autocrata – caso, por exemplo, do Chile de Augusto Pinochet, da Espanha franquista e, pode-se dizer, também do Brasil dos militares. O primeiro caso não é nada desejável, e o segundo depende de fatores que não dependem de nós. Mesmo assim, o que deve alimentar nossa esperança é o fato de haver exemplos suficientes deste renascimento que não dependeram nem da violência, nem da vontade do ditador de plantão.
Casos que exemplificam um fim pacífico de ditaduras (algumas delas bastante brutais), contra a vontade dos ditadores, são as falências dos regimes comunistas no Leste Europeu – com exceção da Romênia e da Iugoslávia, onde a guerra civil também teve um componente de separatismo –, com destaque para a Revolução de Veludo, na antiga Tchecoslováquia, em 1989, e, no mesmo ano, a queda do Muro de Berlim, um marco do processo que levaria à reunificação alemã, ocorrida em 1991. Na América Latina, as redemocratizações da Argentina e do Uruguai, ocorridas na década de 80 do século passado, também se deram dessa forma. Todos esses processos têm elementos em comum que precisamos conhecer e emular, se quisermos que também o Brasil retorne à normalidade democrática em um futuro próximo e se a “via rápida” que ainda está disponível, na forma de uma reação firme do Congresso (como explicamos dias atrás), não se concretizar.
Nenhum regime autocrático caiu ou cedeu sem que a insatisfação popular fosse manifestada de forma inequívoca, de todas as formas possíveis
O primeiro e mais básico requisito é reconhecer que não se está mais em um regime democrático. Ressalte-se que muitas das ditaduras do passado (e também das ditaduras do presente) não são absolutismos medievais: há Constituição, parlamentos, tribunais e eleições; “as instituições estão funcionando” é uma das frases favoritas de quem pretende esconder a realidade de um regime de exceção. Mas alguém em sã consciência negaria, por exemplo, que a Venezuela é uma ditadura? O país tem Legislativo (que chegou até a ter maioria de oposição) e Judiciário, todos em atividade, e realiza eleições (embora hoje marcadas por fraude generalizada). A questão, portanto, não é que “as instituições estejam funcionando”; para haver democracia, seria preciso que funcionassem bem, com independência, freios e contrapesos. É o que não ocorre na Venezuela, onde Legislativo e Judiciário são subservientes ao Executivo, e também não ocorre no Brasil, onde o Legislativo pode até impor algumas derrotas ao Executivo, mas é atropelado pelo Judiciário sem esboçar reação.
Este reconhecimento não se limita ao funcionamento disfuncional das instituições, mas também à ausência de liberdades. Qualquer soviético, alemão oriental, polonês, tchecoslovaco, argentino ou uruguaio sabia muito bem que não tinha liberdade real; os venezuelanos de hoje também sabem. Os brasileiros, no entanto, seguem dormindo; são minoria os que percebem como a liberdade de expressão e o direito à ampla defesa – para ficar nos dois exemplos mais evidentes – desapareceram no Brasil, dependendo da opinião que alguém tenha ou do que alguém faça. Enquanto parte da sociedade civil e dos formadores de opinião continuar falando em “defesa da democracia” para elogiar os arbítrios judiciais cometidos, e em “combate à desinformação” para defender a censura, não há perspectiva de um retorno à normalidade em um futuro próximo.
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Só quando toda a sociedade estiver acordada para a realidade é que o país conseguirá exercer a pressão real pela retomada das liberdades. Nenhum regime autocrático caiu ou cedeu sem que a insatisfação popular fosse manifestada de forma inequívoca, de todas as formas possíveis: pelos meios de comunicação, pelas entidades da sociedade civil organizada, nas ruas e, se possível, pelo voto e pela pressão sobre os representantes eleitos. Isso ocorreu inclusive com regimes que não tinham pudor em colocar suas forças de segurança para reprimir violentamente a população. Em alguns casos, é verdade, houve outros fatores que dispararam o descontentamento, como graves crises econômicas, mas outras redemocratizações, incluindo algumas do Leste Europeu, prescindiram desses elementos: o grito popular era, pura e simplesmente, por liberdade.
Não basta, portanto, amar a liberdade e a democracia; é preciso ter a inteligência para perceber quando elas já não estão presentes, e a força para levantar a voz contra o desmando e o arbítrio. Mas, atualmente, não há como saber se a maioria dos brasileiros – especialmente daqueles que têm a responsabilidade dos formadores de opinião e dos representantes da sociedade civil – terá uma e outra. Tampouco somos ingênuos; sabemos que, mesmo havendo um despertar democrático no Brasil, o caminho para o renascimento da democracia está muito longe de ser simples – basta olharmos, mais uma vez, para a Venezuela, onde há anos a população tenta se livrar do chavismo sem sucesso. Mas isso não serve de justificativa para não fazermos o que estiver ao nosso alcance.



