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O bairro do Realengo, na zona Oeste do Rio de Janeiro, é tão antigo quanto o Brasil moderno. Suas origens vêm dos inícios do século 19. Dizem que é assim chamado por serem "terras do rei". É sobretudo terra de contrastes – ao pé da serra, tem humores estranhos: é muito quente durante o dia e um refrigério à noite. Em um século e meio, à revelia das temperaturas insanas, passou de lugar ermo, de pastoreio, a nova pátria de açorianos e sede da Escola Militar. Na década de 1960-1970, virou uma imensidão de Cohabs monótonas.

Foi quando alcançou fama nacional. Gilberto Gil, detido na Academia Militar do Realengo, compôs Aquele abraço, a mais melancólica das canções tropicalistas. "Alô, alô Realengo..." Tudo na música é celebração carioca – Chacrinha e a torcida do Flamengo, por exemplo. E ironia. A expressão "aquele abraço", emprestada de um programa de tevê da época, virou uma gíria repetida todas as vezes em que, munidos da nossa cordialidade profissional, dizemos, "sem dizer", que nada pode ser feito, que tudo fica como está.

Na semana, o Realengo dos reis, dos militares e do Gilberto Gil foi rebatizado com sangue dos inocentes, tal e qual acontece nos dramas bíblicos, nos épicos de guerra, nas mitologias. Muda tudo. É difícil imaginar que daqui para frente alguém vá ouvir Aquele abraço e lembrar-se de Gil às voltas com o exílio ou do Velho Guerreiro. O efeito da palavra Realengo agora há de ser o mesmo das palavras Candelária e Carandiru: são pura invocação dos mortos, faladas com réquiens e tratadas com algum silêncio.

A essa aura religiosa, contudo, há de se somar uma reação. Tudo vai depender de como, amenizado o trauma, a tragédia do Realengo vai ser entendida. Alguns sinais começam a se desenhar e são típicos de momentos de grande exposição à violência. Já se fala em vigiar mais e mais as escolas – de que se entende policiais à porta, câmeras, detector metais, somando-se aos cadeados, portões altos e funcionários refratários a qualquer sombra.

Um bunker, enfim, esquecendo-se de que, à revelia de toda a dor, escolas só merecem esse nome se interagirem com a comunidade. Do contrário, serão internatos para meninos e meninas ou mais um dispositivo de segurança – um celular amplificado – , o que coloca em perigo seu destino de espaço da civilidade e do conhecimento. O alerta está dado: há vigilância o bastante. Não carece punir ainda mais as instituições de ensino com algemas que as impeçam de se mover.

Mas há algo sim que se possa fazer – e mais uma vez as lições vêm dos Estados Unidos, país que tropeça, mas não desiste de reatar as pontas de seu sistema educacional. Falta entre nossos professores estudiosos de violência, comuns na pátria do Tio Sam. Em aferição parcial feita pela Gazeta do Povo, ano passado, mostrou-se a baixa incidência de pesquisa, nos mestrados e doutorados em Educação, voltadas para essa área. Sem ciência sobre o crime, recai-se nos lugares comuns que pintam a sociedade violenta como uma Sessão da Tarde entre mocinhos e bandidos. Aquele abraço. Aprendeu-se muito sobre o assunto. Hora de virar o disco.

Sabe-se que o homicídio, o abuso, o roubo, a corrupção podem ser diluídos com iluminação, saneamento, participação social, acesso ao conhecimento, programas de geração de renda, relações de vizinhança, mobilidade. Com coragem. Não há como tornar possível esse mundo quando tudo o que se oferece é um professor acuado e desinformado, com o dedo em riste e às portas fechadas. Já são horas de a escola somar a seu sólido discurso moral – uma herança jesuítica – um discurso operacional, abandonando a posição de donzela, admitindo suas próprias práticas de exclusão e o que daí demanda.

Os 12 mortos do Realengo inspiram ainda uma outra reação. Em nome deles, que se faça no Brasil uma opção pelos jovens – são 34,7 milhões de brasileiros entre 15 e 24 anos, 18,5% da população. Os números são urgentes. Desses moços, pobre moços, 53,1% estão fora da escola. Entre os que estão na sala de aula, um a cada três tem defasagem idade – série, o que é um convite à evasão.

Em suma, adolescentes e jovens são vulneráveis – e os nossos vulneráveis são, com otimismo, cerca de 7 milhões, de acordo com dados da Ritla – Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana. Caso pareça pouco, lembrem-se, o país envelhece. Tem de ser agora. Não seremos tão juvenis em 10,15 anos, quando a próxima geração há de se aproximar mais e mais dos padrões europeus.

Quando se fala em opção, entenda-se campanhas, sensibilização de empresários, generosidade com nossos jovens da periferia – justo os mais expostos à sedução da criminalidade e à frustração de se sentir à parte da sociedade de consumo. Alô, alô – é isso mesmo. Todas as promessas de felicidade contidas em carros, viagens e grifes são para a grande massa de empobrecidos uma imagem amarga do que não poderão alcançar. Basta se colocar no lugar deles. É lição antiga. É o princípio de tudo.

Que o ocorrido com os pequenos e a Wellington nos suscite o silêncio, mas nunca o esquecimento. O Realengo será daqui para frente uma terra de reis mortos. Em memória deles, um dia, sua gente decidiu, toda abraços, fazer dias melhores.

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