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Funcionará assim: alvo de uma avalanche de denúncias que caracterizam longa e contumaz conduta de afronta ao decoro parlamentar, o presidente do Senado, José Sarney, será julgado pelos amigos. Também não seria justo que o fosse pelos inimigos, linchado como num tribunal revolucionário – mas com a instalação, anteontem, do Conselho de Ética encarregado de abrir as investigações, presidido e composto por uma maioria de aliados do senador, percebe-se desde logo que, como numa peça teatral bem ensaiada, o final (feliz para Sarney; e empobrecedor para a cultura política brasileira) já está escrito.

Teria, então, o presidente Lula razão em afirmar, como o fez também anteontem, que há "bons pizzaiolos" no Senado? Referia-se não ao caso Sarney, mas à tentativa da oposição de investigar a Petrobras em uma CPI. Para o presidente, os múltiplos indícios de irregularidades levantados na administração da estatal não serão confirmados pela CPI – logo, será mais uma a "acabar em pizza", como tantas outras. Certamente, Lula é levado a esta certeza pelo fato de que a comissão é majoritariamente dirigida e formada por seus aliados, que tratarão de usar de estratagemas regimentais e políticos para que a comissão termine sem conclusões desfavoráveis para o governo.

Lula foi autor de uma das mais censuráveis críticas ao Senado. Em essência, pode até razão; pode, como cidadão, valendo-se da interpretação que faz a partir de seu conhecimento histórico, concluir que os senadores são de fato "bons pizzaiolos". Mas sua desrespeitosa afirmação faz-nos forçosamente lembrar de uma frase cunhada por Sarney, hoje seu aliado preferencial: Lula não obedeceu à liturgia do cargo. Titular de um Poder, não deve se dar ao disparate de atacar outro Poder constituinte da República que governa.

Entretanto, a "sinceridade" do presidente leva-nos a entender que, também se depender dele, o veterano senador maranhense José Ribamar Sarney (embora represente o estado do Amapá) sairá limpo das acusações que pesam contra ele, tais as artimanhas que os aliados do próprio, com claro apoio de Lula, articulam para protegê-lo da inevitável borrasca que sobre ele supostamente desabaria se fosse julgado com a imparcialidade que o caso reclama. Afinal, não se trata apenas de salvar ou condenar a pessoa de Sarney; trata-se de salvaguardar o prestígio e a respeitabilidade da instituição parlamentar – pilar fundamental da democracia que logramos construir nas últimas décadas.

Dentre dezenas de revelações constrangedoras surgidas nos últimos meses para turvar ainda mais a já duvidosa biografia do veterano político, quatro delas motivaram a criação do Conselho, que só se reunirá para examiná-las em agosto, após o recesso parlamentar. No seu comando estará o obscuro senador fluminense Paulo Duque (PMDB), indicado pelo chefe da tropa de choque que defende Sarney, o notório alagoano Renan Calheiros, também peemedebista. Dentre outras vantagens de se ter um amigo como presidente da comissão está o fato de que, pelo regimento, cabe-lhe a prerrogativa de até mesmo se recusar a receber as denúncias – o que equivale, em tese, a um pré-julgamento.

Tanto quanto um Conselho de Ética de antemão aparentemente comprometido com a absolvição do senador José Sarney, tem ele também a seu favor o proselitismo público e interno feito pelo próprio presidente da República, como já frisamos. Evidencia-se, desta forma, uma orquestração destinada a salvaguardar não apenas a pessoa do presidente do Senado ou a preservar-lhe o cargo, mas também resguardar um esquema político do qual fazem parte, como aliados e interessados, o presidente, o PT e o PMDB.

Com efeito, Lula tira proveito do pantagruélico apetite que o PMDB invariavelmente demonstra pelo poder. Unem-se em torno do projeto de manterem-se no comando da República. Um e outro veem nessa aliança a garantia de que a próxima eleição os levará a dividir – como o fizeram até agora – o aparelho do Estado e as vantagens que dele podem tirar. O que inclui, evidente, a manutenção da gigante Petrobras em suas mãos.

Daí a necessidade de salvar Sarney do naufrágio, pois, reconheça-se, dele depende – pela experiência que acumula nas carcomidas (mas ainda eficazes) artes da política e pelo cargo de presidente do Congresso – a manipulação dos muitos cordéis com os quais se pretende construir a figuração de uma eleição de moldes democráticos.

É lastimável que sejamos obrigados a assistir a esse tipo de política pequena, quase nada dedicada a ser instrumento do bem coletivo, mas, em vez disso, voltada preferencialmente para a defesa de interesses de um grupo restrito. Uma política voltada para o poder pelo poder, praticada com o objetivo de dar aos que dela partilham o "direito" de usufruir das benesses que a máquina pública proporciona. Tanto quanto os escândalos que temos descoberto a cada dia, o jogo de cartas marcadas em sua apuração é resultado dessa política distorcida. Às favas com os escrúpulos, dizem, nas entrelinhas, os "homens públicos" que dela partilham.

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