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Nos próximos dias 26, 27 e 28 de agosto o Supremo Tribunal Federal (STF) realizará audiências públicas para embasar o julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, na qual se pleiteia a possibilidade de aborto no caso de fetos anencefálicos. Melhor dizendo, pleiteia-se eufemisticamente a "antecipação terapêutica do parto", argumentando-se inclusive que não se trata de um aborto, como se as palavras pudessem modificar os fatos.

Fato incontestável foram os 20 meses de vida da menina Marcela de Jesus, que contradizem frontalmente o afirmado na ADPF, de que a anencefalia é "incompatível com a vida extra-uterina, sendo fatal em 100% dos casos". Contra todos os prognósticos de que viveria algumas horas apenas, Marcela nasceu em 20 de novembro de 2006, em Patrocínio Paulista (SP), e foi um exemplo para a medicina, vindo a falecer em 1º de agosto último.

"Ela foi um exemplo de que um diagnóstico não é nada definitivo", disse a pediatra Márcia Beani Barcellos, que a acompanhou do nascimento à morte e muito se surpreendeu com o seu desenvolvimento. Vale lembrar, inclusive, que Marcela morreu de pneumonia aspirativa, e não por causa diretamente relacionada à sua deficiência.

Poder-se-ia alegar que no caso de Marcela não houve propriamente anencefalia. Entretanto, é inegável que este foi o diagnóstico, tanto na fase intra-uterina, como logo após o nascimento. Se Marcela tivesse sido abortada, não teríamos como saber que ela não era, de fato, "inviável". O único modo de sabermos quantos dias, meses ou anos de vida pode ter uma criança é permitindo que ela os viva.

Há muito se sabe que há diferentes graus de anencefalia. Esta constitui uma deficiência grave, mas de modo algum autoriza que consideremos a criança como "não-humana" ou como "não-viva". Os próprios defensores dessa posição se contradizem quando afirmam que o anencéfalo não está vivo, não sendo portanto sujeito de direitos, e depois dizem que pode morrer ainda enquanto feto, ou que morre pouco após o parto. Ora, só pode morrer aquele que está vivo. Aliás, a morte será o destino de todos nós, e se o fato de sabermos que alguém vai morrer nos autorizasse a matá-lo, quem escaparia a essa vulnerabilidade?

É curioso também que se tente previamente negar, na proposição da ADPF, que se trata de um aborto eugênico. Matar um feto pelo fato de ser deficiente? O que é, senão eugenia? Certamente o caso não se enquadra como aborto necessário. A legislação brasileira só não pune o aborto em raríssimos casos, como quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, o que certamente não é o caso.

Além de extrapolar as funções do STF, que não é legislador, a aprovação da ADPF abriria perigosíssimo precedente para a não-proteção jurídica de seres humanos deficientes. Teríamos começado a classificar vidas humanas como "úteis" ou "inúteis", contrariando o preceito fundamental da Constituição Federal que, no seu artigo 5º, assegura a todos o direito à vida.

Ninguém ignora o quanto é duro o sofrimento de uma família que espera um novo bebê e vem a saber que a criança é anencefálica. Mas o sofrimento é nosso companheiro em inúmeras situações na vida, e nem sempre existe uma solução a ser aplicada, a não ser a sua aceitação. Neste caso específico, a aceitação da criança deficiente costuma trazer uma grande tranqüilidade aos pais, que têm consciência de terem feito o que estava ao seu alcance pelo seu filho. Neste sentido testemunhou Cacilda, a mãe de Marcela: "Estou tranqüila, não triste, pois eu cuidei dela até quando Deus quis". O mesmo manifestam os pais de muitas outras crianças em situação similar, mesmo as que viveram poucos minutos. O aborto, pelo contrário, não "cancela" a vivência, e pode deixar marcas profundas. De qualquer modo, não é o sentimento que estabelece o direito.

A proteção constitucional da dignidade humana abrange a todos, mas deve ser particularmente considerada quando se trata dos mais frágeis. A capacidade de amar aqueles que pouco podem retribuir faz com que uma sociedade se estruture sobre bases éticas sólidas.

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