No mesmo dia em que endossou a depredação institucional realizada por Lula e pelo PT, validando o nome do advogado pessoal do presidente da República para ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, o Senado também deu sua contribuição para a depredação fiscal do país, ao aprovar uma versão modificada – para pior – do arcabouço fiscal proposto pelo governo e que já tinha passado pela Câmara dos Deputados. Na manhã de quarta-feira, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) aprovou o relatório de Omar Aziz (PSD-AM) por 19 votos a 6; horas depois, o plenário fez o mesmo, dando a Lula uma folgada maioria de 57 a 17.
O texto vindo da Câmara já estava aquém do que o país necessita em termos de âncora fiscal: garante aumento real do gasto público todo ano, independentemente do desempenho da economia, em uma espécie de “piso de gastos”; prevê punições bastante brandas em caso de descumprimento das metas de resultado primário estabelecidas no texto – metas que, para muitos economistas, só conseguirão ser cumpridas à custa de elevação da já excessiva carga tributária nacional; e deixa de fora do arcabouço mais de uma dezena de exceções. O Senado, em vez de endurecer o texto, por exemplo impondo mais restrições a novos gastos caso a meta seja descumprida ou punindo energicamente os gestores irresponsáveis, resolveu ampliar as rubricas que não ficam sujeitas ao arcabouço, acrescentando o Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF), o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e gastos com ciência, tecnologia e inovação.
A não ser que um surto de responsabilidade atinja a Câmara, que terá de analisar o texto novamente, teremos um arcabouço ruim que nos deixará longe do necessário para a tarefa de colocar a economia nos eixos
O aumento na quantidade de gastos que não estarão sujeitos aos limites do arcabouço traz à memória o processo de desmoralização do teto de gastos, a regra fiscal aprovada em 2016 e recentemente abolida. Gradativamente, Executivo e Legislativo foram construindo “puxadinhos” que deixaram o teto cada vez mais fragilizado. A diferença entre as duas âncoras está no fato de que, enquanto a regra criada no governo Temer foi sendo desidratada aos poucos, a regra de Lula e Fernando Haddad já nasce repleta de buracos que certamente atiçarão o apetite das áreas não contempladas, dispostas a usar todos os meios de pressão à sua disposição para entrar futuramente na lista de exceções.
Sugestões para que o Senado melhorasse o arcabouço não faltaram. Na véspera da votação, uma audiência pública na CAE teve a participação dos economistas José Márcio Camargo, da PUC-RJ, e Marcos Mendes, do Insper. Este último, um dos autores da regra do teto de gastos, sugeriu o fim do “piso de gastos”, com possibilidade de não haver aumento real da despesa dependendo dos resultados primários, e a diminuição na quantidade de exceções, mas foi ignorado. Apesar de ambos os economistas terem manifestado dúvidas muito pertinentes a respeito da capacidade de o arcabouço controlar a dívida pública, Mendes defendeu sua aprovação com um argumento que soa quase como uma “redução de danos”: “a gente realmente não vislumbra alternativa melhor, dado o quadro político-institucional que a gente tem”. Em outras palavras, não há como esperar que este governo produza ou defenda qualquer coisa minimamente melhor que este arcabouço, e um arcabouço ruim ainda é melhor que arcabouço nenhum.
E um arcabouço ruim é o que teremos, a não ser que um surto de responsabilidade atinja a Câmara, que terá de analisar o texto novamente graças aos acréscimos feitos no Senado. Isso nos deixará longe do necessário para a tarefa de colocar a economia nos eixos. A agência de classificação de risco Standard and Poor’s o admite no mesmo relatório em que elevou a perspectiva da nota brasileira de “estável” para “positiva”, afirmando que “a viabilidade da regra fiscal dependerá de governo e Congresso atacarem a rigidez orçamentária, incluindo indexação de gastos e uma pesada folha de pagamento do funcionalismo” e que será preciso aprovar outras reformas, como a tributária e a administrativa, já que contar apenas com elevação na receita sem reduzir gastos, como faz o arcabouço, é política bastante temerária.
No comunicado em que anunciaram a manutenção da Selic em 13,75%, os membros do Copom afirmaram haver “alguma incerteza residual sobre o desenho final do arcabouço fiscal a ser aprovado pelo Congresso Nacional e, de forma mais relevante, para a condução da política monetária, seus impactos sobre as expectativas para as trajetórias da dívida pública e da inflação, e sobre os ativos de risco”. Se o arcabouço ficar como está, ou se sofrer apenas algumas pequenas mudanças cosméticas, será difícil que ele tenha o poder de criar condições para um ciclo de queda consistente dos juros. Lula e os petistas podem reclamar o quanto quiserem, mas hoje o maior obstáculo para que o Banco Central inicie o afrouxamento monetário está no próprio governo e na sua incapacidade de propor uma política fiscal que não seja gastadora.