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Reza a lenda que os turistas – rumo ao Jardim Botânico, cartão-postal das araucárias – se surpreendem ao saber que Curitiba tem pobreza. "É a Vila das Torres", respondem os guias ao microfone, já com uma informação adicional capaz de mostrar que nossas favelas são melhores que as outras: "Noventa e tantos por cento do lixo reciclável da cidade é recolhido pelos moradores de comunidades como essa."

O que segue na conversa – de acordo com testemunhos – é surreal: os viajantes pedem para descer na Disneylândia da reciclagem – raridade num país onde apenas 7% dos municípios têm coleta seletiva. Mas ficam sabendo que uma parada no bairro não faz parte do roteiro, frustrando quem quer contar em casa ter dado um giro na capital brasileira com maior índice de aproveitamento de lixo inorgânico. Tristeza do Jeca.

Diante do pastiche do Botânico, presume-se, o interesse pela vila vai embora com o vento. E assim caminha a humanidade: o drama do lixo sucumbe a qualquer arremedo de beleza, para alegria dos bichos estranhos, como ratos e baratas. Vide a Mumbai engolida por detritos no poético Quem quer ser um milionário? As fezes e os rios emporcalhados da Índia viram efeito cosmético, exotismo tropical. Reagir para quê?

Só resta um remédio: estabelecer o choque contínuo de realidade como princípio de todas as coisas. O ônibus de turismo deveria descer na vila sim, pois ninguém encara o lixo da mesma maneira depois de passar por ali. Não se trata de fazer sensacionalismo. Mas já passa da hora de tratar os resíduos como um debate do mesmo naipe que a segurança e a educação – a nervos expostos. O dilema precisa ser visível não apenas nos baldes da cozinha ou nos contêineres esmaltados dos condomínios. É preciso colocar debaixo das barbas da população a montanha de 2,5 mil toneladas/dia acomodados no Aterro da Caximba. Ou quiçá as garrafas pet empilhadas nos quintais dos casebres das Torres, do Parolin ou da Vila Savana.

Donas de casa, escolares, empresários deveriam excursionar pelos espaços onde o material rejeitado é deixado. Ali, vão sentir o odor do chorume narina adentro, conhecer a dinâmica industrial do aterro, e saber o que será, que será, com tanto gás metano rivalizando com o Cruzeiro do Sul. É isso ou manter o problema do lixo no mundo das ideias – bem longe da sala de aula, das corporações ou dos ônibus de turismo –, onde não passa de um dilema dos outros. Resta ser criativo e duro na resolução, de modo a saltar dos estagnados 20% de reciclagem e galgar resultados no aproveitamento do material orgânico. Final feliz.

O procurador de Justiça Saint-Clair Honorato Santos – coordenador das promotorias do Meio Ambiente do Ministério Público do Paraná – vem apostando na receita da rigidez criativa. Ergue a voz para dizer que míseros 80 e tantos municípios paranaenses têm planos para o setor. Bate o pé que a compostagem é possível, para desespero dos preguiçosos. E agora defende que a reciclagem doméstica deva se tornar lei municipal, tirando o homem comum do conforto da janelinha. Não tem "a" nem "b" – todo mundo pode aprender a separar o lixo –, com a grandeza que o gesto pede.

É fato que quando os problemas do meio ambiente chegam a um impasse – a exemplo do atual imbróglio sobre o Aterro Sanitário da Caximba, já por um fio – o acaso do lixo parece descambar para o político. Critica-se a morosidade dos municípios consorciados em resolver o problema, fala-se dos direitos dos moradores do bairro em fechar a porteira, da tendência em empurrar o saldo do lixo para cada vez mais longe – quem sabe um terrenão em Ponta Grossa.

O desacato é aproveitar a deixa para se calar sobre as responsabilidades do homem comum, o que faz do lixo um assunto de repartição. Essa atitude defensiva simplesmente não funciona: no final do dia vai ter sempre um saquinho de supermercado à espera do coletor. Ali pode estar a solução ou o Juízo Final. Melhor apostar na primeira hipótese. Na esteira do debate se o aterro fica ou sai da Caximba, assunto quente neste ano da graça de 2009, o mais lógico é arquitetar meios de não deixar o lixo para o departamento das causas escatológicas. Tem saída: colocá-lo na vitrine.

A economia que ronda os detritos precisa ser conhecida tanto quanto o ciclo do café ou a alvorada das montadoras. Deve despertar desejo nos empreendedores. A responsabilidade das partes precisa ser clara como um contrato de aluguel. Deve despertar a obrigação. E conhecimento. Dá até para fazer charadas de guri: três dias de reciclagem garantem um dia de vida a mais a um aterro, como ensina Marilza de Oliveira Dias, da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, uma das vozes mais lúcidas do setor.

Em tempo

Avançou-se, é verdade, na consciência do drama do lixo. Exemplo: pesquisa de três anos atrás da Consultoria Francischini – sobre o público-leitor curitibano – apontou um altíssimo grau de sensibilidade ecológica mesmo entre os menos expostos à educação, o que costuma ser raro. Crédito seja dado às contínuas campanhas da prefeitura, desde tempos idos, atingindo na mesma medida escolares, donas de casa e formadores de opinião.

Campanhas funcionam – mas precisam ser contínuas e agressivas, para que não se chegue a índices de uma Cidade do México, onde um depósito de 50 milhões toneladas de lixo promete calar os mariachis. Chegou-se ao limite. E agora, na pátria de Cantinflas, fala-se que a mais alta tecnologia do mundo não é capaz de dar conta de 12,5 mil toneladas de detritos por dia. É preciso uma mãozinha da população. Por obséquio.

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