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Supremo Tribunal Federal, o STF, gostar de fazer acrobacias jurídicas de vez em quando, como no caso do passaporte vacinal.
A estátua da Justiça diante do prédio do Supremo Tribunal Federal.| Foto: Rosinei Coutinho/STF

Em outubro de 2021, as mudanças aprovadas pelo Congresso Nacional na Lei de Improbidade Administrativa entraram em vigor. Elas faziam parte do “pacote legislativo” de desconstrução da Lava Jato e de seu legado, com a aprovação de leis que dificultassem o bom combate à corrupção ou que fossem mais lenientes com os maus administradores. As mudanças, neste caso, cumpriam os dois propósitos, pois reduziam bastante as possibilidades de responsabilização de gestores por improbidade, e também mudavam prazos prescricionais.

À época, a Gazeta do Povo lembrou que a lei anterior não era totalmente adequada, pois era aberta demais e permitia que alas ideologizadas do Ministério Público acusassem gestores de improbidade mais por discordar de políticas específicas que por encontrar nelas quaisquer indícios de irregularidade. Isso levava ao chamado “apagão das canetas”, em que o administrador preferia não fazer nada a correr o risco de uma acusação de improbidade por algo que tivesse feito. Esse era um problema que precisava ser atacado, mas não foi o que ocorreu: em vez disso, optou-se por restringir a responsabilização apenas a casos em que o dolo fosse comprovado. Essa escolha deixava impunes até mesmo casos em que a irregularidade, embora não intencional, resultasse de evidente negligência, imprudência ou imperícia, situações em que o bom senso exigiria uma responsabilização, ainda que com punições mais leves em comparação com as situações de improbidade intencional. Em resumo, a nova lei não foi feita para ajudar bons gestores a conhecer melhor os limites de sua atuação e agir com mais liberdade e sem medo, mas para ajudar os maus gestores a escapar impunes.

Se o STF decidir pela retroatividade das novas regras, as consequências seriam desastrosas não apenas pela quantidade de processos afetados, mas pelo que isso significaria em termos de respeito à lisura na administração pública

Essa ajuda, agora, pode valer não apenas para os casos futuros de improbidade. Em uma repetição da frase atribuída ao ex-ministro Pedro Malan, segundo a qual “no Brasil até o passado é incerto”, o Supremo Tribunal Federal pode fazer as alterações na Lei de Improbidade retroagirem, em julgamento marcado para começar nesta quarta-feira, dia 3. O caso concreto em tela é o de uma advogada contratada pelo INSS na década de 1990, e cuja negligência levou o órgão a perder prazos em processos que somavam quase R$ 400 mil. A Justiça, ao condená-la, considerou não ter havido dolo – o que, pela nova legislação, afastaria a possibilidade de responsabilização por improbidade; no caso, ainda se soma a discussão sobre os prazos prescricionais, já que eles também teriam sido favoráveis à advogada caso a regra atual estivesse valendo à época.

Como o STF decidiu pela repercussão geral do caso, o que a corte resolver no caso da advogada será aplicado em todos os demais casos de condenações passadas por improbidade sem comprovação de dolo ou em que houve a prescrição pela nova lei, que ocorre oito anos após o fato considerado ímprobo – até 2021, a prescrição ocorria cinco anos após a descoberta do fato. Dados oficiais obtidos pela reportagem da Gazeta do Povo mostram que há cerca de 700 casos em análise que sofreriam os efeitos de uma decisão em favor da retroatividade da nova lei – isso sem contar todas as outras condenações já transitadas em julgado e que ficariam passíveis de reversão. As consequências seriam desastrosas não apenas pela quantidade de processos, mas pelo que isso significaria em termos de respeito à lisura na administração pública.

Como bem lembraram especialistas ouvidos pela Gazeta, a retroatividade quando uma legislação nova é mais benéfica para o réu que a lei anterior não é um absurdo em si, mas ela é um princípio do direito penal, não do direito administrativo, onde se encaixam os casos de improbidade. Nas palavras do procurador Roberto Livianu, “a lei em vigor à época é a que rege o ato. Qual era a lei que valia à época? A Lei 8.429/1992. Acabou”. O Estado não foi omisso, buscou a responsabilização dos gestores dentro dos prazos previstos na lei, por atos devidamente enquadrados como ímprobos segundo a regra então vigente. O desmanche de todo esse trabalho por uma canetada do Judiciário seria a potencialização do retrocesso já aprovado pelos parlamentares, um balde de água gelada nos brasileiros que já davam como certo um cenário de impunidade futura e, como se não bastasse, ainda terão de presenciar também a “impunidade passada”.

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