
Como temiam todos os autênticos defensores da liberdade de expressão no Brasil, o robusto voto de André Mendonça, proferido na semana passada, não foi suficiente para convencer seus colegas de Supremo Tribunal Federal e continua a ser voz isolada. Na quarta-feira, a corte formou maioria para declarar a inconstitucionalidade ao menos parcial do artigo 19 do Marco Civil da Internet, e com isso as portas estão abertas para que os próprios ministros decidam, mais uma vez assumindo ilicitamente o papel de legisladores, quais serão as novas regras – e, independentemente do modelo que saia vencedor, o certo é que ele será um forte incentivo à censura nas mídias sociais.
A regra agora derrubada é aquela que responsabiliza provedores (como mídias sociais) apenas quando eles descumprem ordens judiciais de remoção de conteúdo. Qualquer bom constitucionalista haverá de explicar que o artigo 19 do Marco Civil nada tinha de oposto à carta magna, pelo contrário: ele equilibrava de forma bastante sólida a garantia constitucional da liberdade de expressão e a proteção dos demais direitos que poderiam ser violados pelo abuso dessa liberdade. Mas já há muito sabe-se que o controle de constitucionalidade, uma das tarefas que realmente competem ao Supremo, foi transformado em muleta para que os ministros possam derrubar qualquer lei que contrarie suas convicções pessoais. Foi o que ocorreu com o artigo 19.
O controle de constitucionalidade foi transformado em muleta para que os ministros do STF possam derrubar qualquer lei que contrarie suas convicções pessoais
No lugar do que derrubaram, cada ministro parece ter uma ideia diferente do que seria mais conforme à Constituição. Os modelos preferidos dos ministros são o “dever de cuidado”, em que os provedores respondem judicialmente pelo simples fato de não derrubarem conteúdos “proibidos”, independentemente de notificação ou decisão judicial, obrigando-os a vigiar com lupa tudo o que for publicado; e o “notice and takedown”, em que basta a notificação para gerar responsabilização caso o conteúdo permaneça no ar. Ambos, no entanto, são um convite à censura: ou por meio dos próprios provedores, que apagarão qualquer publicação que tenha o mais leve potencial de trazer complicações jurídicas; ou de grupos militantes, que notificarão os provedores sobre quaisquer publicações que lhes desagradem.
As divergências exibidas ao longo do julgamento entre os ministros adeptos da censura estão apenas nos casos em que cada um dos dois modelos seria aplicado; é aqui que se percebe mais explicitamente o desejo de legislar que move cada ministro, cujas listas de “temas proibidos” estão baseadas mais nas preferências de cada um que em argumentos objetivos de ordem constitucional. Alguns ainda chegam ao ponto de sugerir, cinicamente, que as novas regras valham “enquanto o Congresso não legislar a respeito”, o que em bom português significa “enquanto o Congresso não legislar como desejamos que ele legisle”, já que o Poder Legislativo (o real, não o autoproclamado) se manifestou sobre o tema ao menos duas vezes: quando discutiu e votou o Marco Civil, e quando freou o PL 2.630/2020 – isso deveria ser o suficiente para afastar qualquer alegação de “omissão do Congresso” a respeito do assunto.
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Os supremos censores, assim, conseguem o melhor dos mundos: têm o bônus de ver apagadas das mídias sociais todas as manifestações que eles consideram indesejáveis – incluindo as críticas à sua atuação, que eles desejam ver incluídas no conceito bastante amplo de “ataque ao Estado Democrático de Direito” – sem o ônus de serem vistos como os responsáveis diretos pela censura, já que o trabalho de apagar os conteúdos será dos próprios provedores. Mas que ninguém se engane: trata-se apenas de mera terceirização da mordaça, que continua a ser responsabilidade dos “admiradores do regime chinês”, como admitiu Gilmar Mendes nesta quarta-feira.



