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A característica mais saliente e grave do momento anômalo pelo que passa o país é, sem sombra de dúvida, a suspensão de vários pilares do Estado de Direito e da democracia. Hipertrofia do Judiciário – tanto por apropriação indevida de poder por parte do Supremo Tribunal Federal quanto por omissão do Legislativo – e supressão ou violação sistemática de duas garantias estruturantes da ordem constitucional, a liberdade de expressão e o devido processo legal, resumem essa situação esdrúxula e aberrante em que vivemos. Tanto mais esdrúxula e aberrante quanto mais consegue contar com a conivência e até mesmo apoio de parte dos formadores de opinião, algo que adiciona um toque surrealista ao cenário e cria uma camada de névoa que torna difícil para muitos brasileiros compreender a gravidade desse quadro macabro.
Das consequências de tudo isso, há uma que de alguma forma é especialmente escandalosa e, ao mesmo tempo, enfeixa e materializa esse estado de coisas absurdo: o volume ingente e desconhecido de cidadãos que foram calados por determinação do STF (ao menos desde 2019, quando da instauração do inquérito das fake news) ou do TSE (especialmente nos meses anteriores aos pleitos de 2022 e 2024), por meio de uma ferramenta não apenas ilegal (por não estar prevista em lei), mas também inconstitucional: a suspensão de perfis em mídias sociais.
Quantas pessoas o Supremo mandou calar? Esta é uma pergunta que não pode continuar a ser varrida para debaixo de um tapete; ela precisa começar a ser feita por todos nós: brasileiros famosos e anônimos, formadores de opinião, entidades da sociedade civil organizada, críticos e apoiadores do Supremo
Enquanto o Marco Civil da Internet prevê apenas a retirada de publicações específicas, em casos determinados (e continua a ser assim mesmo depois da recente alteração feita pelo Supremo), a suspensão de perfis inteiros tem sido corriqueira e indiscriminadamente determinada pelo STF e pelo TSE. Cidadãos brasileiros, famosos e anônimos, foram banidos do ambiente virtual, sem poder manifestar opinião nenhuma sobre tema nenhum.
Não se trata simplesmente de censura, e censura prévia cabal, o que já é intolerável à luz dos dispositivos constitucionais (artigo 220 e nos incisos IV e IX do artigo 5.º). As mídias sociais tornaram-se tão onipresentes que não exageramos ao afirmar que o banimento da presença on-line é o equivalente, no século 21, do antigo instituto medieval da “morte civil”, pelo qual uma pessoa seguia viva e livre, mas sem nenhum dos demais direitos. A comunicação é uma dimensão essencial do ser humano, e a internet tornou-se, para muitos, a única forma de tornar públicas suas opiniões sobre assuntos os mais diversos, de trivialidades aos temas que definem o futuro de um país. Não são poucos, ainda, os que fizeram da presença on-line sua atuação profissional e meio de subsistência. Retirar tudo isso de alguém, portanto, é nada menos que degradante, algo incompatível com a dignidade humana, o tipo de pena desumana e cruel que se julgava superada nos últimos dois séculos, mas que está de volta – e, ainda por cima, sendo alvo de uma inaceitável normalização.
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É justamente por se tratar de medida tão acintosa que nos espantamos com o fato de ninguém ter feito ainda uma pergunta tão simples quanto fundamental: quantas pessoas, afinal, o STF e o TSE mandaram calar até agora? Quantos casos dessa inconstitucional censura prévia e morte civil tivemos desde 2019, ainda que em algum momento os perfis e os acessos tenham sido restaurados? Ao longo dos últimos anos, alguns casos mais notáveis chegaram ao conhecimento do público, sendo noticiados pela imprensa ou nas mídias sociais. Mas... e o número total?
Causa-nos surpresa esse desinteresse, pois a curiosidade a respeito de números é uma das mais evidentes na atual sociedade da informação. Diante de um acidente ou catástrofe, uma das primeiras questões se relaciona à quantidade de vítimas. Diante de um megaevento, há uma competição frenética para se oferecer as estatísticas mais confiáveis sobre o número de pessoas presentes. De balanços de empresas a resultados eleitorais, os números sempre foram indispensáveis para dar as verdadeiras dimensões de determinada realidade; sem eles, algo fica faltando. E o mesmo se aplica à quantidade de brasileiros censurados: desconhecer o seu número é desconhecer a amplitude da suprema máquina de censura – aliás, mesmo quem discorda da nossa avaliação a respeito das suspensões, considerando-as necessárias em nome de uma certa “defesa da democracia”, deveria ter a curiosidade em saber quantas pessoas foram alvos de bloqueios de perfis, nem que fosse para exibir o número como um troféu.
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Mas esta é uma pergunta cuja resposta os brasileiros não sabem – no máximo, conseguem estimar. Se considerarmos que a suspensão de perfis era medida corriqueiramente adotada por Moraes para os réus do 8 de janeiro, já partiríamos de algo em torno de 1,5 mil pessoas; o whistleblower Eduardo Tagliaferro, que colaborou com Moraes para montar a estrutura censora compartilhada entre TSE e STF, disse em entrevista à Gazeta que só o TSE bloqueou mais de 3 mil perfis. São números muito maiores que os apresentados por Moraes em fevereiro a Pedro Vaca, relator para liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): à época, o ministro afirmou ter bloqueado 120 perfis em cinco anos; no entanto, só o X disse ter derrubado mais de 200 contas por ordem do Supremo ou do TSE desde 2020 – com a agravante de que muitas ordens de bloqueio vinham com a instrução para que a rede alegasse violação de termos de conduta, e não decisão judicial, para suspender os perfis.
Ninguém, no entanto, deveria estar sendo obrigado a estimar e especular os números, porque em qualquer sociedade normal esse tipo de informação seria providenciada pelo Estado sem maiores questionamentos. Mas, se depender do STF, os brasileiros jamais saberão a verdade. Esta Gazeta do Povo, ao longo das últimas semanas, tentou todos os meios institucionais possíveis para conseguir essa informação, recebendo respostas negativas; o Supremochegou ao cinismo de dizer que a reportagem seria capaz de compilar este dado, buscando de uma em uma todas as decisões a esse respeito – e convenientemente ignorando que a maioria (se não a totalidade) de tais decisões está protegida por sigilo. Para uma corte que se gaba de ter um nível de transparência que “não encontra paralelo em nenhuma corte do mundo”, a recusa em fornecer um simples número (pois nem sequer perguntamos os nomes de quem teve os perfis suspensos) é bastante reveladora.
Quantas pessoas o Supremo mandou calar? Esta é uma pergunta que não pode continuar a ser varrida para debaixo de um tapete; ela precisa começar a ser feita por todos nós: brasileiros famosos e anônimos, formadores de opinião, entidades da sociedade civil organizada, críticos e apoiadores do Supremo. E a resposta a essa questão é um direito dos cidadãos e uma obrigação das autoridades, para que todos finalmente saibamos, com toda a transparência que um assunto dessa importância exige, com que frequência nossa Constituição foi pisoteada e uma garantia democrática foi abolida.



