Uma das várias lições tiradas da distopia 1984, de George Orwell, é a de que o controle da linguagem é um instrumento poderosíssimo a ser usado por quem deseje impor suas vontades à sociedade. O Ministério da Verdade no qual o protagonista Winston Smith trabalha não se encarrega apenas de reescrever a história, decidindo o que é verdade ou mentira de acordo com a conveniência do momento, mas também de garantir que as palavras tenham o significado que o regime queira dar a elas, impondo ou banindo termos a seu bel-prazer.
A versão tupiniquim do Ministério da Verdade orwelliano tem sido o Tribunal Superior Eleitoral, cuja tarefa deveria se limitar a organizar o processo eleitoral e garantir que ele transcorra tranquilamente, de forma limpa e transparente. Mas o TSE quis ir além e, como na obra de Orwell, tomou para si a tarefa de definir o que é verdade ou o que é fake news, e não o fez usando como critério a realidade, mas a conveniência – do contrário, jamais teria censurado a divulgação de informações verdadeiras sobre fatos como a camaradagem entre o então candidato Lula e o ditador nicaraguense Daniel Ortega; muito menos teria ordenado a veiculação de um direito de resposta que mentia explicitamente a respeito de Lula ter sido inocentado pela Justiça, quando na verdade seus processos haviam sido anulados.
Não basta a pretensão de “ensinar” aos brasileiros o que devem ou não dizer; o TSE ainda comprou a “etimologia freestyle”, em que palavras sem significado racista ganham, pelas mãos de militantes identitários, origens forjadas para que passem a ter conotação preconceituosa
Faltava, no entanto, o passo seguinte, que acaba de ser dado com uma cartilha que lista uma série de termos a serem evitados por terem suposta conotação racista. Ressalte-se que não se trata de algum tipo de normativa interna, para que os documentos do próprio TSE deixem de usar tais palavras ou expressões; a pretensão é a de “educar” toda a sociedade brasileira. Obviamente a publicação não tem nenhum tipo de caráter impositivo, mas, como afirma o ministro Benedito Gonçalves – o mesmo dos tapinhas de Lula e do “missão dada é missão cumprida” – na apresentação da cartilha, trata-se de “promover a mudança de hábitos e comportamentos nas pessoas e facilitar a exclusão de expressões idiomáticas que possam embutir preconceito racial”.
Uma palavra chama a atenção: possam. Pois não basta a pretensão – em si mesmo totalitária – de “ensinar” aos brasileiros o que devem ou não dizer; o fato é que nem o TSE tem certeza de que os termos “vetados” realmente tenham alguma conotação racista. Bastou a mera possibilidade para que eles fossem incluídos na lista (que já não podemos mais chamar de “lista negra”, a julgar pela cartilha do Ministério da Verdade made in Brazil). E, para piorar ainda mais a situação, o TSE o fez comprando sem pestanejar o que o doutor em Direitos Humanos Raphael Tsavkko Garcia apelidou de “etimologia freestyle”, em que palavras e expressões que não têm absolutamente nada de racistas ganham, pelas mãos de militantes identitários, origens forjadas para que passem a ter conotação preconceituosa.
Pois, se é verdade que existem expressões racistas como “negro de alma branca” – que, aliás, rendeu ao jornalista de esquerda Paulo Henrique Amorim uma condenação por injúria racial contra o colega de profissão Heraldo Pereira –, palavras como “denegrir”, “criado-mudo” ou “escravo” nem de longe se encaixam neste conceito quando se pesquisa com honestidade intelectual a origem dos termos. Em alguns casos a cartilha do TSE até menciona a etimologia correta, com as devidas fontes, mas nem isso demove os autoproclamados donos da língua de recomendar o banimento “independentemente da origem da palavra” (como no caso do “criado-mudo”). Talvez o exemplo mais absurdo seja o da expressão “feito nas coxas”, pois a fonte citada pela cartilha desmente de forma inequívoca a suposta origem “racista” do termo, que exigiria escravos de quase 4 metros de altura para associá-los à fabricação de telhas. Mesmo assim, o TSE tem a audácia de afirmar que “não há pleno consenso sobre as origens do termo”, em um caso evidente no qual a verdade é abafada em nome do identitarismo.
Para um órgão que se diz tão preocupado com fake news, abraçar com gosto a fake etymology, como poderíamos chamá-la, é de uma hipocrisia incomensurável. Não basta ao TSE simplesmente extrapolar suas funções de corte eleitoral; é preciso fazê-lo com intenções autoritárias, atropelando o bom senso e a pesquisa séria de quem se dedica a investigar a origem das palavras. Não se trata, aqui, de denegrir o tribunal, mas de esclarecer que é inaceitável que o TSE queira fazer dos brasileiros escravos do identitarismo linguístico, ainda mais por meio de um trabalho de meia-tigela que resultou em uma cartilha claramente feita nas coxas.
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