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Exceto por uma declaração formal de guerra, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, já fez tudo o que estava a seu alcance para desestabilizar a Ucrânia, começando em fevereiro deste ano, quando forças pró-Moscou (com o possível envolvimento de militares russos não uniformizados) tomaram controle da península da Crimeia e chegaram a promover um plebiscito, considerado ilegal por boa parte da comunidade internacional, em que a maioria dos eleitores aprovou a "independência" crimeana, com subsequente incorporação à Rússia. Depois disso, foi a vez do leste da Ucrânia, primeiro com milícias separatistas combatendo o exército de Kiev e, mais recentemente, com a participação (sempre negada pelo Kremlin) de tropas russas, como indicam imagens de satélites da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Nos últimos dias, vem vigorando um frágil cessar-fogo, que o presidente ucraniano, Petro Poroshenko, diz ter acertado com Putin. O governo russo, por sua vez, cinicamente desmentiu Poroshenko – afinal, se a Rússia não tem nada a ver com o que acontece na Ucrânia, como poderia concordar com uma trégua como se fosse uma parte beligerante? Em vez disso, Putin tentou se descrever mais como um mediador pacifista que como instigador de conflitos, mas a verdade é que o presidente russo sabe muito bem a força que possui, e que o poder militar ucraniano não é páreo para a máquina de guerra russa. Só isso explica que Putin tenha tido a ousadia de afirmar, em conversa telefônica com o presidente da Comissão Europeia, Manuel Durão Barroso, que podia tomar Kiev em poucos dias (o Kremlin, depois, não negou a frase, mas usou a desculpa-padrão de que ela foi "tirada de contexto").

O arrefecimento do conflito veio ao mesmo tempo em que a Otan promovia uma cúpula no País de Gales; naturalmente, a reunião foi dominada pela preocupação com a Ucrânia e com o crescimento do Estado Islâmico, no Iraque e na Síria. No entanto, como a Ucrânia não faz parte da aliança militar, o tema gerou mais retórica contra Putin que ações concretas para ajudar os ucranianos – no máximo, foi aprovada uma ajuda financeira para modernizar as forças armadas ucranianas. Mais significativa foi a aprovação de uma força de reação rápida, composta por 4 mil combatentes e que deve ficar baseada no leste europeu, especialmente para garantir a segurança dos países bálticos; Estônia, Letônia e Lituânia são membros da Otan e também têm significativas minorias russas que Putin poderia querer "proteger" algum dia – proteção, aliás, que o presidente russo nega às minorias étnicas que habitam a Rússia e pleiteiam autonomia ou independência, como é o caso da Chechênia.

Em 1994, pelo Memorando de Budapeste, a Ucrânia abriu mão do terceiro maior arsenal nuclear do planeta em troca da garantia de integridade territorial. A Rússia, que assinou o documento, vinha negando que tivesse quebrado o acordo, alegando que casos como o da Crimeia constituíam meras crises internas. Mas, com a comprovação das incursões de tropas russas no leste ucraniano, a violação do Memorando é evidente, e mesmo assim a reação ocidental tem sido tímida. As sanções aprovadas até o momento só fizeram cócegas na Rússia, e há espaço para medidas muito mais enérgicas, que forcem uma mudança de ânimo entre os russos, ao estilo do que ocorreu com o Irã. O problema é a dependência europeia do gás russo; enquanto não houver uma fonte alternativa de energia, muitos países europeus pensarão duas vezes antes de bater de frente com Putin.

De qualquer maneira, Putin já se antecipou a qualquer marginalização por parte das potências ocidentais, procurando estreitar laços dentro do grupo dos Brics. A reunião do bloco, realizada em Fortaleza logo após o fim da Copa do Mundo, favoreceu Putin ao silenciar sobre a situação na Ucrânia. Mesmo com a deterioração da situação desde então (incluindo a derrubada, em agosto, do voo MH17 da Malaysia Airlines, atingido quando sobrevoava área dominada pelos rebeldes separatistas), a diplomacia brasileira não soltou um pio contra Putin, em uma omissão triste que dá razão àqueles que criticam a guinada ideológica do Itamaraty na última década.

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