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O voto do ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal (STF), favorável à manutenção da demarcação contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, como área contínua, e também favorável à saída dos arrozeiros da região, dá uma firme indicação sobre o desfecho desta complexa questão, que vem se arrastando há três anos. Embora o ministro-relator tenha anunciado na quarta-feira apenas um dos 11 votos do colegiado do STF, e a sessão tenha sido suspensa, pelo pedido de vistas do ministro Carlos Alberto Direito, o princípio que norteou a sua argumentação ("só a demarcação contínua viabiliza os imperativos constitucionais") deve balizar a seqüência da sessão que julga o processo, remarcada para a segunda quinzena de setembro. É uma pena que a decisão se encaminhe para consolidar a visão do índio como um ser incapaz, um mito desfeito pela presença de uma advogada de origem indígena nos recentes debates sobre o tema e pelas notícias que dão conta da exploração de garimpos ilegais mantidos pelos próprios índios.

O aspecto econômico também não pode passar ao largo da decisão. Afinal, sob as terras contínuas da reserva há riquíssimas jazidas minerais que ficariam fora de alcance dos demais brasileiros. Há de se lamentar ainda o fato de a segurança nacional estar em segundo plano nessa discussão. A reserva Raposa Serra do Sol, formada por uma área de 1,7 milhão de hectares, localizada na fronteira com a Venezuela e Guiana, foi homologada pelo presidente Lula, em 2005. Nela vivem 20 mil índios, a maioria deles da etnia macuxi. Esta área tem sido objeto de polêmicas e disputas. Os produtores rurais, especialmente arrozeiros, moradores não-indígenas e até boa parte da população indígena reivindicam que pequenas partes da reserva sejam desmembradas. Eles já recorreram à Justiça, assim como o próprio governo de Roraima, adepto desta solução. No entanto, as batalhas judiciais têm sido vencidas pelo governo federal.

Apesar de todo o embasamento argumentativo e jurídico do extenso voto do ministro Ayres Brito (104 páginas), a idéia da demarcação contínua traz grandes fragilidades, por todas as suas implicações políticas, sociais, econômicas e culturais. Afinal, a demarcação da reserva indígena não é um simples litígio de terras. É uma questão que envolve interesses nacionais maiores.

O primeiro questionamento é o que afeta os maiores interessados: os índios. Confiná-los numa imensa área como aquela é condená-los à própria sorte, pois saúde, educação, transporte e demais serviços presentes na região são mantidos pelo governo de Roraima. O isolamento é visto pelos defensores da demarcação atual como meio de proteger a cultura do índio. No entanto, à exceção da Serra do Sol, onde parte expressiva dos índios não fala a língua portuguesa, a maioria dos indígenas habitantes da região não quer ser segregada; fala fluentemente o português; e já adquiriu os usos e costumes da sociedade, demonstrando que não deseja a oferta multiculturalista das organizações não-governamentais (ONGs), mas os mesmos direitos dos demais cidadãos brasileiros. O confinamento só os afastará das políticas públicas que devem alcançar todos os brasileiros, sem distinção.

Do ponto de vista da segurança nacional, é preciso lembrar que a imensa área da Raposa Serra do Sol fica localizada justamente numa região estratégica do território nacional, na fronteira da Venezuela e Guiana, perto de áreas de treinamento da insidiosa guerrilha colombiana. Foi preciso que um general, o comandante militar da Amazônia, Augusto Heleno, quebrasse o silêncio da hierarquia das Forças Armadas para denunciar todas essas mazelas e dizer com todas as letras que a política indigenista brasileira é "caótica" e "lamentável".

É justo que se identifique, na reserva, quais são as propriedades de não-índios que resultaram da ocupação indevida de terras tradicionalmente mantidas pelos índios. Essas são áreas que devem ser desocupadas, como manda a lei. Contudo, é necessário que se faça justiça com aqueles que ocuparam de boa-fé terras devolutas, com autorização do Estado, e que agora estão sendo considerados "intrusos" no chão onde nasceram e onde suas famílias vivem há várias décadas.

Se conseguir no STF o intento de manter a demarcação contínua, a Fundação Nacional do Índio (Funai) criará um Estado dentro de outro, violando o chamado pacto federativo, cláusula pétrea da Constituição brasileira. Ao contrário do que deveria fazer, deixará de respeitar a vontade da maioria dos índios. E dará uma prova incontestável de que a política indigenista do país é, como afirmou o general Heleno, "caótica".

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