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Esse 2014 pode não ter sido o "ano da graça" para Curitiba. O poder público amarga uma penosa transição de gestões, a bordo de problemas que se arrastam. Fala-se em falta de dinheiro para investimentos e dívidas não cumpridas. Os fios de luz caindo em pencas dos postes se impõem como símbolo da decadência. As pichações desalmadas completam o cenário dark.

Houve, sim, trechos da cidade renovados para a Copa do Mundo. O bairro do Rebouças e partes da Água Verde – no entorno da Arena da Baixada – estão mais iluminados e o calçamento, convidativo ao passeio. Ainda assim, a capital pende mais para a caricatura das zonas nobres – belas e limpas – brilhando em contraste com as periferias ao rés-do-chão.

A questão, contudo, não chega a termo se olhada pelos filtros do ressentimento. A decadência das cidades é fenômeno mundial e a palavra "decadência" pouco tem a ver com cosmética. É um perigo olhar a urbe do ponto de vista higienista e gentrificado – como se a limpeza dos espaços e a limpeza das pessoas fossem os únicos quesitos com os quais lidar. Em absoluto.

Um bom instrumento de análise é procurar onde a cidade ganha seu biotônico. Perceber os movimentos lentos e duradouros. Identificar as tomadas de posse feitas pela população, que se empodera e ressignifica os espaços. Quando se chega a esse estágio, inicia-se uma conversa de gente grande. Exemplos de retomada não faltam, como a "tomada" do Bosque Gomm, no bairro do Batel, e a Praça de Bolso do Ciclista, na esquina das ruas Presidente Faria e São Francisco.

A derrubada do Bosque Gomm original é um desses clássicos urbanos. Tem como ingredientes uma área nobre da cidade, um bem tombado no meio do caminho, interesses econômicos e a lei do mais forte. No fim dessa escala da evolução – se é que assim se pode chamar – sobrou um punhado de árvores na parte baixa do bosque. Pois foi justo esse resto que desencadeou um movimento "de câmara" bonito de ver. Numa legítima "estratégia do afeto", como diz Muniz Sodré, as sobras do Gomm viraram aquele fiozinho de corda ao qual se agarrar. O Gomm virou lugar de peregrinação sabática, zona criativa, lugar de convivência. Nas entrelinhas, os idealistas que gastam ali algumas horas estão dizendo, de forma indireta, o tamanho da cidade onde querem habitar e os limites que acham justos impor ao mercado imobiliário e ao poder público.

O fenômeno "Bosque Gomm" bem poderia figurar num dos capítulos do livro A condição urbana, do francês Olivier Mongin. Em suas andanças pelo mundo, o pesquisador investiga os "pequenos espaços" que implantam sangue novo nas cidades decadentes. A renovação não vem necessariamente de empreendimentos espetaculares, mas de enxertos. A renovação nasce nos quarteirões. É poético, mas também técnico. Mongin é um observador de manifestações inesperadas, como a dos nova-iorquinos que se mobilizam para conter os arranha-céus em zonas de habitação familiar ("Na minha quadra, não", dizem as placas) e toda sorte de occupy. Não é precipitado dizer que o movimento que resultou na Praça de Bolso do Ciclista tem parentesco com essas iniciativas.

A praça – implantada numa pequena zona baldia do Centro Velho de Curitiba – resulta de uma militância contínua dos ciclistas. Antes da praça houve os jardins anárquicos do Juvevê, as ciclofaixas feitas na marra, a música na rua – o delicioso "Saia da Bolha" –, para citar alguns projetos. Em pouco tempo, a sofrida Rua Presidente Faria, apagada pela canaleta do expresso, viu nascer a Bicicletaria Cultural e a pocket praça, como também é chamada. Como nos outros casos, não faltou quem rotulasse a iniciativa de um capricho de meninos mimados que costumam passar férias em Amsterdã. Não procede. Prova disso é que a romântica pracinha não tardou a se enraizar pela Rua São Francisco, que de via cinzenta do Centro tende a se tornar um iluminado "calçadão".

O comércio em torno da praça e da rua ganha novas lanchonetes. Lado a lado com os botecos "pé-sujo" se abrigam os bares alternativos. Há quem diga que o perigo da gentrificação também existe em meio a todas essas boas intenções. Mas as evidências são baixas. Por ora, o que se vê é a convivência de grupos que transitavam em zonas com pouca conexão. Na São Francisco de agora – aquela que tem a Praça de Bolso como monumento – as distâncias se tornaram menores. É o que faz de um aglomerado de gente, carros e concreto uma cidade.

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