A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), uma das principais instituições de ensino superior do país, aprovou, por unanimidade de seu Conselho Universitário, a adoção de cotas de ingresso nos cursos de graduação para travestis, transexuais e pessoas “não binárias”. Apesar de a decisão ter ocorrido em um 1.º de abril, estava longe de ser mentira: a universidade de fato se rendeu à militância identitária, implantando uma política que está mais para privilégio que para ação afirmativa.
Segundo as novas regras, cursos com até 30 vagas deverão oferecer uma vaga para este grupo, que pode ser tanto uma vaga adicional quanto retirada da concorrência geral. Cursos com mais de 30 vagas terão de oferecer dois lugares para essa população. Os novos cotistas só poderão ingressar por meio da nota do Enem, não pelo vestibular da instituição. A Unicamp afirmou que a implantação das novas cotas faz parte de um acordo para encerrar uma “greve de estudantes” ocorrida em 2023 – uma situação em si mesma surreal, já que, a rigor, quem poderia fazer greve em uma universidade são os professores e funcionários, não os alunos, que, recusando-se a assistir às aulas, nada mais fazem que desperdiçar o dinheiro dos contribuintes paulistas, que bancam sua formação, pois a Unicamp é uma universidade estadual.
Não basta a um grupo ser discriminado ou enfrentar dificuldades cotidianas para se ver contemplado por cotas universitárias; é preciso que haja uma situação comprovada de injustiça no acesso ao ensino superior público
Trata-se de medida atabalhoada e incoerente, por vários motivos. A própria Unicamp afirma não haver dados oficiais sobre a porcentagem da população brasileira que se identifica como trans, travesti ou não binária. O Grupo de Trabalho formado pela universidade para montar a nova política de cotas (formado por 15 integrantes, 7 dos quais se definem como transexuais) citou um estudo de 2021 afirmando que 1,9% dos brasileiros seriam trans, travestis ou não binários; no entanto, a reserva de vagas pode representar uma proporção muito maior que isso, pois há cursos da universidade que oferecem menos de dez vagas no total. Nesta situação, uma única vaga reservada já representaria ao menos 10% dos calouros, ou cinco vezes mais que a alegada participação desse grupo no total da população.
Além disso, não há nenhuma evidência apontando que pessoas trans, travestis ou não binárias tenham algum tipo de dificuldade no acesso ao ensino superior que precise ser compensada por meio de ações afirmativas. Isso distorce o sentido original da ação afirmativa, pois não basta a um grupo ser discriminado ou enfrentar dificuldades cotidianas (como é o caso inegável da população LGBT) para se ver contemplado por cotas universitárias; é preciso que haja uma situação comprovada de injustiça no acesso ao ensino superior público – é o caso, por exemplo, dos egressos de escolas públicas, cujo ensino é notoriamente mais deficiente que o dos colégios privados, deixando-os em situação de desvantagem nos processos seletivos.
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Por fim, um detalhe específico pode dar margem a arbitrariedades na seleção desses calouros. Assim como já ocorre em outras universidades que aceitam cotistas transexuais, travestis ou não binários, não bastará a autodeclaração: o candidato terá de escrever um “relato de vida”, que será analisado por uma comissão de verificação. Esse relato servirá só para desclassificar candidatos que a comissão considere não se encaixar no perfil? Nesse caso, que critérios serão levados em conta? Ou o texto também terá peso no processo seletivo ao lado da nota no Enem? E que peso seria esse? Um candidato que descreva mais dificuldades ou situações de preconceito pode ser selecionado em detrimento de outro que tenha tido nota maior no Enem, mas cujo relato não seja tão candente? Simplesmente não se sabe, ou ao menos a Unicamp não deu nenhuma informação a esse respeito.
Quando surgiram as primeiras políticas de ação afirmativa, já se dizia que elas deveriam ser uma solução temporária e paliativa para facilitar o acesso imediato ao ensino superior público de grupos que, especialmente por fatores socioeconômicos, se viam privados dessa oportunidade. Ao mesmo tempo, a prioridade deveria ser melhorar o ensino médio para que, no fim, todos pudessem competir em condições de igualdade no Enem e nos vestibulares. Nada disso aconteceu – pelo contrário: o Novo Ensino Médio está destinado a ter ainda mais ideologia identitária –, e as cotas passaram de temporárias a permanentes, abrangendo cada vez mais grupos, a ponto de tornarem-se, em casos como o da Unicamp, quase um privilégio. A Constituição afirma, no caput do seu artigo 5.º, que “todos são iguais perante a lei”; e, no inciso I do artigo 206, que deve haver “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”; mas esses preceitos constitucionais estão sendo, aos poucos, minados pelo identitarismo.