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A pesquisa "Hábito de Leitura 2014", da Brain Inteligência de Mercado e Estratégia, divulgada dias atrás pela Gazeta do Povo, traz um dado intrigante. Quase 30% dos 416 entrevistados não compram livros – preferem emprestá-los de amigos ou de bibliotecas. Parece um dado desimportante diante de um outro, bem mais animador, aquele que indica que 67% dos consultados se dizem leitores, um número superior à média nacional. A resistência em "comprar", contudo, pede uma análise, pois indica um aspecto da tradição de leitura do país.

Por "tradição de leitura" entenda-se "as práticas que se solidificaram no Brasil quando o assunto são os livros e os jornais". Na tradição, os brasileiros tendem a se furtar de empenhar o valor do dinheiro em um produto cultural – e o fazem com convicção. Acreditam ser a coisa certa. O assunto transcorre no campo da gratuidade. No nosso imaginário, os materiais de leitura devem ser dados, de graça, caídos do céu. Devem ser garantidos pela tutela e pelo paternalismo do Estado. Como esse comportamento soma mais de três séculos de repetição, arraigou-se e se naturalizou.

É bom lembrar que fizemos por merecer. No Brasil Colônia não havia imprensa – e ai de quem desobedecesse. A censura garantia a baixa circulação de livros ou promovia a leitura clandestina. A maioria, infelizmente, passava a vê-los como algo perigoso. A fundação da Imprensa Régia, em 1808, podia ter amenizado esse olhar obscurantista, mas a instituição mal nasce e se põe a promover a política da impressão de livros didáticos e a impressão de obras literárias autorizadas pelo império. A confusão entre educação e cultura vai ser perpetuada – inclusive no nome do ministério, o MEC.

Assim que afrouxadas as amarras da censura, a leitura de jornais e, posteriormente, revistas, não seguiu caminho muito melhor. Seguindo a prática ibérica, os impressos eram lidos por homens, em espaços públicos – como tabernas –, e depois repassados oralmente às mulheres, criados e crianças, nos espaços domésticos, já mastigados e distorcidos. O costume enraizado de não comprar jornais e livros, pelo que tudo indica, funda-se nessas duas situações infantilizadoras, a do medo e a do agrado.

Anos atrás, a profissional de editoração Isa Pessôa declarou em entrevista que o brasileiro não compra livros e outros materiais de leitura por um simples motivo: porque não acha importante. Simples como isso. Gastar dinheiro com roupas, sapatos, viagens, escola particular, aparelhos de som e o que mais, tudo bem – está na conta –, mas essa lógica não se aplica aos impressos. Os argumentos para a recusa em aceitar o impresso como material de primeira necessidade são os mais variados. Um deles é de que não se lê um livro duas vezes, ou quase nunca. Por que tê-los em casa? Ou se ganha ou se empresta. Explica por que muitos ascendem socialmente, passam a consumir mais, mas a lista de compras não inclui a ida à livraria.

O que fazer? Uma das respostas seria "ensinar a comprar livros". Pais bem poderiam pôr essa tarefa na sua lista. A outra seria expor livros e impressos em espaços públicos, externando sua importância. Vale para empresas, igrejas e escolas. Uma terceira seria garantir a imagem do leitor. Ele é um inexistente. Lê em casa, como se estivesse estudando escondido. Faltam-lhe visibilidade e espaços de leitura. E não vale alegar que estamos na era tecnológica – fosse assim, os japoneses não seriam grandes consumidores de jornais e de mangás.

No mais, resta observar os demais dados da Brain para constatar que o assunto "leitura" vem sempre cercado de um autoengano. Ninguém gosta de se declarar um não leitor, sob pena de ser confundido com algum silvícola. Quase 70% se dizem leitores – um número extraordinário no país em que a pesquisa "Retratos da Leitura", do Pró-Livro, indicou retração no número de praticantes entre 2008 e 2012. Mas, desses, mais de 60% não estão lendo por ora; 31% não ultrapassam dois títulos por ano; e mais de 50% dedicam até duas horas à leitura. Está tudo relacionado.

Pesquisas sobre leitura são das mais difíceis, há de se considerar. A começar pelo cacoete de pensá-la como hábito e não como prática. Hábito é uma palavra rotineira e preguiçosa, que não provoca a pensar em como lemos, que importância, espaço e tempo damos para isso. Some-se a tendência de entender a leitura como uma ilustração do espírito, algo possível dentro da cápsula – uma cápsula cada vez mais difícil de alcançar, ainda que permaneça desejável a paz de desfrutá-la. Há de se considerar a leitura como um território dado a tropeços – de resto, como a vida.

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