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Um dos maiores legados da Copa no Brasil bem poderia ser a redução da violência nos estádios. É um desejo da sociedade, mas disso pouco se fala quando o assunto são os investimentos no Mundial. Um erro tático. A experiência de jogos bonitos, com torcidas saudáveis e excelente segurança, foi o bastante para fazer pulular dois sentimentos – o de comparação e o de desejo. Bom seria se o clima da Copa não tivesse durado tão pouco.

O encerramento da Copa nem tinha completado um mês e a violência já voltou aos noticiários, com a pancadaria entre torcedores de Santos e Corinthians no domingo passado. É um potente inibidor de apetite. É verdade que não se trata do único problema do futebol brasileiro: a lista de desatinos é longa. Mas há pelo menos uma boa notícia: tem remédio. Não somos nem o primeiro nem o único país do mundo em que a criminalidade dá de 7 a 1 no esporte. Uma boa estratégia é observar o que os outros fizeram.

É fato que as condicionantes nacionais são muitas. O Brasil, sabemos, não é para amadores. Não há como adotar de olhos vendados a ciência da criminalidade do futebol utilizada na Itália, por exemplo, acreditando que o efeito aqui seria o mesmo. Há significados diferentes para o esporte praticado por nós e talvez aí resida um dos maiores impasses. Carecemos de analogias. Mário Filho, Ruy Castro, Roberto DaMatta, José Miguel Wisnik... poucos se ocuparam de decifrar o que as quatro linhas dizem sobre nós. É mesmo um paradoxo o futebol ser tão pouco estudado no lugar em que é mais falado.

Vale lembrar o trabalho feito pelo jornalista norte-americano Franklin Foer, em Como o futebol explica o mundo. Foer disseca o futebol praticado entre os hooligans da Irlanda; o papel desse esporte como significante do conflito entre sérvios e croatas, e passa pelo Brasil, para surpresa o capítulo mais pálido e frustrante de sua saga. Mas há algo que o jornalista diz sobre o planeta, e que nos toca: o futebol tem a ver com processo civilizatório. Assim como ler jornal servia de ingresso para entrar na sociedade americana – o que os imigrantes praticavam com afinco –, participar de um time era prova de que etapas mais primitivas tinham sido vencidas.

O que interessa aqui lembrar é que a violência, quando impera, faz mais do que impedir que as pessoas cheguem aos estádios. A violência amordaça o imaginário, sem o qual não há país criativo, feliz, relacional. São muitas as razões para reagir. Como? Mesclando saídas próprias com estratégias de outros lugares – em especial a Inglaterra, que sofisticou sua reação à criminalidade das arenas. Criou uma inteligência. Fiscaliza mais de 90 times, e faz desse ato de monitorar uma questão tão importante quanto uma guerra. Há dois bons trabalhos a respeito – Para entender a violência do futebol, de Maurício Murad, e o recém-lançado A rainha de chuteiras, do historiador e antropólogo Marcos Alvito, da Universidade Federal Fluminense. Um dos méritos de Alvito é deixar nu o modelo brasileiro de combate à violência esportiva. Cadastrar torcedores não adianta – é preciso identificar os viciados em violência que se infiltram nas torcidas, algo próximo de 3% de todos os filiados. Mais: pede-se mudar nossa maneira de pensar. Nossos policiais são treinados para bater, ficando ao vento todo o resto – leia-se a estrutura dos estádios para receber uma ambulância, a logística em todo o resto da cidade em dias de jogos. O torcedor brasileiro é um ser abandonado desde que sai de casa, e o abandono é um desencadeador de reações negativas. Cada partida exige estar preparado para o pior, ensina o autor, depois de longa observação na terra dos hooligans.

A maior contribuição de Alvito seria a de destacar que não se pode culpar toda a torcida organizada. Cabe às forças de segurança identificar no grupo aquele que se nutre da violência. Ele é uma espécie de dependente químico do quebra-quebra. Impossível saber? Ora, a Polícia Federal foi informada por alguns países – incluindo a Argentina, tida como tão avoada no assunto quanto nós – de que torcedores violentos tinham viajado para a Copa. Foi moleza interceptá-los nos aeroportos. Violento não entra, esse é o ponto. O perfil dessas pessoas doentes nem é uma equação de último grau: são homens adultos, com histórico na praça, com problemas em se manter no emprego, vistos com admiração, donos de uma liderança inaudita. Nisso não somos diferentes de nenhum país. Os aficionados em violência de lá são como os de cá. Sem eles por perto, mais gente se entrega ao maior espetáculo da Terra.

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