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Há quem diga que a ideologia do século 21 será o tempo – as pessoas vão pedir que suas horas roubadas, que ironia, pela tecnologia, sejam devolvidas. Mas há quem diga mais. A ideologia desses tempos em que nos metemos será a hospitalidade. No lugar do ideal do "mundo novo" ou do "mundo melhor", expressão que por séculos cativou gerações, entra o sinônimo "viver junto", como desafio para tornar o mundo habitável.

O "viver junto" parece uma conversa restrita à esfera religiosa, o slogan de um grupo de jovens. Mas não – a hospitalidade é palavra de altíssima voltagem política. Para que fique em pé, precisa dos rigores da filosofia, das iluminações da sociologia e dos saberes da antropologia. Como tudo que é grande e nobre, urge que seja curtida e trabalhada com o afinco destinado às maiores causas.

Não faltam fatos que indiquem a urgência de considerar a hospitalidade a medida de todas as coisas – as últimas eleições foram um caso. As primeiras suspeitas de ebola no Paraná também trouxeram mais da mesma perplexidade: o ódio, o repúdio ao estrangeiro, o encastelamento das classes médias, vejam só, não se limitavam aos cenários inglórios do cinema underground francês. No calor dos boletins epidemiológicos, o outro passou a ser visto não como alguém a ser cuidado – o que seria natural – para ficar reduzido a um desvalido das fronteiras, fronteiras sobre as quais se reivindicam cercas de arame farpado.

Aos exaltados cabe dizer que, primeiro, não há riqueza sem troca. E que toda troca tem seu preço. Segundo, ninguém é um sujeito de fato sem capacidade de reconhecimento do outro. A afirmação é do filósofo Jacques Derrida, que se deteve sobre o tema. Nenhuma dificuldade do "viver junto" lhe escapou – até por uma questão geográfica: vivia na França, país que prova da intolerância e da xenofobia, num desafio lógico à sua tradição humanística. O pensador não tratou do medo e repulsa do outro com discursos edificantes ou coisa que o valha. Preferiu recorrer às propriedades da razão – do que se deduz que a negação "daquele que chega de outras terras" é a escala máxima da desumanização. Derrida chega mesmo a afirmar que a verdadeira hospitalidade (pois existe a de fachada) é incondicional – ou aceita aquele que chega, o estrangeiro, o forasteiro, do jeito que é, ou não merece esse nome. A hospitalidade por inteiro, sem reservas, reconhece o filósofo, é impossível. Mas é na impossibilidade que o "viver junto" se realiza. Uma vez enfrentado, torna algo possível. Do desejo de realizar a hospitalidade nascem as negociações. Caem por terra tantas reservas. O novo começa a acontecer.

O surto recente de xenofobia no Brasil, tendo como alvo imigrantes africanos e caribenhos, é de se beliscar três vezes. Estamos falando do país que nasceu do braço dos estrangeiros. Série de reportagens da Gazeta do Povo, em outubro, sobre a intolerância, denunciou agressões físicas a 13 haitianos apenas no segundo semestre de 2014. Era tragédia anunciada: nos últimos anos a Pastoral do Migrante recebeu denúncias frequentes de maus-tratos a haitianos, instigados a serviços fora do contrato – a exemplo de limpar banheiros – e à rispidez. Do pequeno ao grande desacato, sabe-se, é um passo.

Enquete da Brain Bureau de Inteligência Corporativa com 414 entrevistados de Curitiba deu indícios de que a população ainda está tateando a "questão haitiana". Estima-se que a cidade abrigue 2,5 mil oriundos da ilha caribenha. Pouco mais da metade dos ouvidos aprova as imigrações "no geral". Em questões similares feitas no levantamento, a aceitação chega a 71%. Mas são muitas as reticências ao tipo de imigrante: quase 30% acham que as portas devem estar abertas apenas aos mais qualificados. É provável que se desconheça o bom grau de qualificação de grande parte dos haitianos, por exemplo, embora as oportunidades de mostrar o que sabem sejam mínimas: o grupo está em boa parte restrito à construção civil.

Outro dado que deixa uma suspeita: 40% dizem que os curitibanos "às vezes" são bons acolhedores. Quando falam da postura pessoal, os entrevistados são afirmativos. Quando se trata dos outros, a conversa muda de rumo. Há algo no ar. Tomara que não com a carga intempestiva revelada nas redes sociais.

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